Um desfile de moda não é só para vender roupa — ainda mais se esse desfile levar a assinatura de Ronaldo Fraga. Autodefinindo-se como um homem de seu tempo, o estilista mineiro busca levar esse tempo para a moda que produz. Isso inclui uma forte presença da cultura brasileira ("eu sempre tive isso como uma coisa muito natural") e a preocupação em abordar assuntos não tão usuais no universo fashion.
Atualmente um dos mais reconhecidos e requisitados estilistas do país, Fraga conta que de início seu trabalho não foi muito bem recebido:
— Meus próprios pares me tachavam de caricato, de carnavalesco.
Esse tempo ficou para trás, graças a "muita insistência e resistência" e ao fato de o estilista ter muito clara a noção do que realmente é a moda, com suas múltiplas facetas, transcendendo a questão econômica e enveredando pela cultural e antropológica. Tanto que, em 2014, ele foi eleito pelo Design Museum de Londres como um dos sete criadores mais inovadores do mundo a expor na Designs of the Year.
Leia também:
Em passagem por Caxias, Nuccio Ordine condenou a utilização do conhecimento como mera caça ao diploma
Entrevista: Atriz e cantora Soledad Villamil fala sobre as múltiplas formas de se expressar artisticamente
Entrevista: em álbum solo, Paulo Miklos celebra a influência da música popular brasileira em sua formação
Com agenda lotada, ele encontrou um tempo para visitar Caxias do Sul na semana passada, para ministrar palestra durante o 22º Integramoda — evento que vê como muito importante para alimentar as novas gerações de estilistas que estão surgindo. Autor de mais de 40 coleções em duas décadas de profissão, ele conversou com o Pioneiro e contou, nesta entrevista, um pouco de como vê o universo da moda e o momento atual do setor.
Confira:
Pioneiro: A moda transcende as roupas em si, certo? Para você, o que é moda?
Ronaldo Fraga: A moda é um vetor de definições várias, e de diferentes faces e facetas. É um vetor econômico, um vetor antropológico, um vetor histórico, um vetor cultural. Aquele que eu vejo como efetivamente um vetor transformador é o vetor cultural, porque eu acho que com o vestir está também a moda como fator histórico, como documento do tempo em que vivemos. Mas ela fala de autoestima, ela fala da formação de um povo, na verdade ela revela muito do que um grupo é, do que o indivíduo que forma o grupo é.
Qual é o momento que o setor está vivendo e quais os principais desafios desse momento?
Bem, tem o desafio no âmbito econômico, no qual a gente vê uma transformação que não é no país. Claro, o país vive uma crise de consumo, porque o momento econômico tem afetado o consumo, mas eu acredito que essa crise da moda tem acontecido no mundo, com a migração da indústria para os países asiáticos e produção em série, em larga escala. Toda a engrenagem foi mexida, todas as fórmulas ruíram. Hoje uma discussão sobre moda, que algum tempo atrás ficava no âmbito das tendências, da forma de comercialização, hoje essa discussão é muito mais profunda, envolvendo a própria sobrevivência da moda como a gente a conhece. Então, hoje você se permite discussões várias desse vetor que nos fascina, o brasileiro principalmente tem muito gosto por tudo que se refere à moda, em todas as classes sociais e em ambos os sexos, mas temos também isso de que por um lado há uma crise econômica, e por outro, uma crise conceitual.
Falando em conceitos, como você conseguiu se manter no foco de valorizar as raízes e a cultura brasileira em suas roupas, contar histórias nos desfiles e mostrar desapego a tendências?
Muita insistência e resistência. Eu sempre estive muito certo desse caminho, desse lugar, dessa trajetória. Se hoje é um sucesso, minha agenda é super complicada de administrar, tenho estabelecido trabalhos e projetos em caminhos pelos quais outros estilistas ainda não foram, mas no início, não. No início, meus próprios pares me tachavam de caricato, de carnavalesco, e eu falava de um quarto escuro. Mas eu sempre estive certo disso, de que é importante você ter muito clara a diferença entre fazer roupa e fazer moda. Fazer roupa os chineses já estão fazendo muito bem.
Nos seus desfiles, você dá voz a pessoas comuns, sejam mulheres e homens mais velhos, tatuados, gordas, negros e deficientes físicos, trans. Desfile é uma forma de militância e se sim, por quê?
O desfile é uma plataforma fascinante, por mais que a moda mude, por mais que falem no fim do desfile, ele só vai se transformando. E ele é fascinante na medida em que o estilista tem ali oito minutos para contar uma história inteira. E as pessoas confundem, acham que o desfile é só para vender roupa. Também é para vender roupa, mas você consegue vender muito mais coisas ali, de linguagens subliminares. Hoje o meu desfile é um dos mais concorridos da São Paulo Fashion Week e eu acho que é muito em função disso. As pessoas já vão esperando que além da roupa, vai ter outras coisas ali, vou estar falando do nosso tempo. E até essa coisa de dizerem, "o Ronaldo Fraga fala de cultura brasileira", pra mim eu sempre tive isso como uma coisa muito natural. Ninguém nasce no Brasil impunemente, ninguém nasce num país com uma cultura tão vasta e rica sem ter de fazer por merecê-la. Mas eu não falo só do Brasil, eu falo do meu tempo. Eu sou um homem do meu tempo, e tento mostrar isso no meu trabalho.
Qual foi o principal ensinamento que a moda lhe deu?
A moda me levou para lugares que pelas vias normais eu não iria. Foi com a moda que eu fui para a Amazônia, foi com a moda que eu fui para a divisa aí do Rio Grande do Sul com a Argentina, sempre procurando um encontro entre os diversos Brasis que existem dentro do Brasil. O Brasil feito a mão, o Brasil industrial, por exemplo. E nessas histórias eu acho que saí um homem um pouquinho mais interessante, um homem pelo menos com mais assunto (risos). Isso foi o melhor que a moda me deu.
Que legado, ou legados, você quer deixar ao criar suas roupas?
Eu quero falar do meu tempo. Agora, o legado, só o tempo vai dizer, se ficar algum legado, eu não sei.
Volta e meia você está em Caxias, aqui temos um curso de Moda e Estilo, o Walter Rodrigues mudou-se para cá... Como você vê a Serra gaúcha em termos de moda, que referências você tem dela?
Eu tenho muito carinho com a região, hoje vou menos do que eu costumava ir, nos áureos tempos do desenvolvimento do tricô, acho que infelizmente é um mercado que foi combalido. Mas tem um histórico que o Brasil sabe, da qualidade do ensino de moda que é dado aí em Caxias, e é uma região de uma cultura muito forte. Agora, como o Brasil como um todo, é uma região que tem a faca e o queijo na mão. Tem a indústria, tem a história, mas ainda não nos deu grandes criadores. Eu acho que pode vir com essa nova geração de estilistas.
O que nunca deveria ter virado moda?
Olha, nunca deveria ter virado moda a cópia, a cópia explícita. Eu acho que isso tira o poder de autoralidade de um povo, e sem autoralidade, um povo não tem autoestima.
O que nunca sai de moda?
A delicadeza. Delicadeza e gentileza, isso nunca sai de moda.