A história de 35 anos de atividades da Casa da Cultura Percy Vargas de Abreu e Lima supera as nuances de uma relação formal entre plateia e artistas. Papéis fundamentais exercidos nos bastidores também enriqueceram as articulações no palco da Casa da Cultura no passado. Entre os protagonistas que interagiram com os artistas antes, durante e após os espetáculos, destaca-se Luiz Carlos Ferronato, produtor de inesquecíveis peças que agitaram a década de 1980. O empresário abraçou intensamente o papel de entusiasta cultural. Havia um sentimento forte pela arte e uma propensão voluntária de aproveitar a boa estrutura da Casa da Cultura, recorda Ferronato. Com a inauguração do espaço, em 23 de outubro de 1982, Ferronato colocou em prática sua disposição em promover e aproximar grandes exibições do cotidiano caxiense.
E foi com um espírito animado que o empresário se consagrou como um dos evidentes personagens na história da Casa da Cultura. Em parceria com o jornalista Renato Henrichs, desenvolveu inúmeros projetos em favor da agenda artística local. A dupla forjou a experiência e o gosto pelos espetáculos no Recreio da Juventude, clube que mantinha em sua estrutura um bem equipado departamento cultural e um departamento jovem atuante.
— As boas propostas do aproveitamento do palco da Casa da Cultura foram sempre bem aceitas pela comunidade — destaca Ferronato.
A produção e a organização vislumbravam todos os horizontes possíveis. O desejo de trazer uma peça de porte nacional continha a mesma intensidade de recepcionar trabalhos locais ou de Porto Alegre. Foi com respeito e afastado de preconceitos que ele possibilitou a exibição de inéditos trabalhos do teatro gaúcho. A sensibilidade de acolher a arte de forma imparcial presenteou o público caxiense com fenômenos como o então promissor Bailei na Curva, em 26 de novembro de 1983. A peça originara-se em maio, em Porto Alegre, uma prova da excelente sintonia de Ferronato com a atualidade e as variadas manifestações culturais. Em seguida, veio Tangos & Tragédias, de Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez, peça inaugurada em 1984. A Verdadeira História de Édipo Rei, com José Victor Castiel, em 1985, outro marco do teatro gaúcho, foi acolhido e aplaudido pelos caxienses.
Ao rever o passado, Ferronato confessa um carinho especial pelos atores gaúchos. Os três grupos teatrais acima citados chegaram à Casa da Cultura de Caxias sem aqueles rótulo e fama dos artistas da cena nacional ou com passagem por novelas. Bailei na Curva encantou o público caxiense quando a Casa da Cultura comemorava seu primeiro aniversário. Foram cerca de 15 apresentações, sempre com a casa lotada. Mas não é só isso, enfatiza o produtor, o Bailei virou uma marca histórica e de alta performance estética. A Casa da Cultura teve o privilégio de recepcionar esse grupo e, por sua vez, o caxiense testemunhou um elenco de atores empenhados pela ousadia e pela criatividade. Na mesma proporção, Ferronato enaltece a satisfação de ter produzido os espetáculos de Tangos & Tragédias e Édipo Rei, trabalhos que se fortaleceram ao longo do tempo e que, hoje, numa digressão histórica, orgulham quem dedicou amor e esforço à arte. Algo digno de aplausos.
RELATOS DE BASTIDORES
A produção dos espetáculos possui fortes contrastes entre as fronteiras do palco e seus bastidores. Sintonizado com a efetivação das realizações, Ferronato se entregou com absoluto envolvimento a sua tarefa. Hoje, o assunto sugere a publicação de um livro ou, quem sabe, um documentário.
Instigado para relatar como funcionava o trabalho de produção, Ferronato faz memoráveis e curiosas revelações, bem como reconhece a consideração de inúmeras pessoas que de forma anônima o auxiliaram. Ferronato esclarece que trazer um espetáculo não se resume em vender ingressos e colocar os artistas no palco. Existe um processo preliminar de negociação que envolve regras contratuais, agendas de apresentações, estadias em hotéis, serviço de refeições e acompanhamentos personalizado, pois os atores não deixam de ser visitantes e precisam de orientações para chegar e passar o período dos shows com tranquilidade.
No ramo hoteleiro, foi parceiro da cultura o empresário Antonio Casagrande Sehbe, que sempre dispensou generosidade para oferecer estadia com descontos na Rede Alfred de Hotéis. Outro colaborador foi Natali Pasqual, que também simpatizava com as boas turnês.
O ritmo exigente de quem atua nos bastidores não tinha hora para começar e nem para terminar. Quando o espetáculo era encerrado e o público retornava satisfeito para casa, a equipe de produção continuava na labuta. Era o momento de aguardar os artistas trocarem de roupa e levá-los jantar. São inesquecíveis as alegrias manifestadas pelos atores nas mesas da Galeteria Peteffi e da Churrascaria Imperador. A hospitalidade era contagiante. Caxienses abriam suas casas para oferecer jantares, como aconteceu em junho de 1983, quando a empresária Geni Peteffi preparou uma sopa de agnoline para Eva Wilma e Carlos Zara. Ou Alexander Bedin, que sempre surpreendia com seus pratos requintados. Depois de uma noite comprometida com os aspectos profissionais, havia o compromisso de acordar cedo para conduzir uma atriz a cumprir sua rotina de natação na Pranadar ou levá-la para o aeroporto.
Nesse retrospecto, Ferronato lembra ainda de muitos outros episódios da sua exuberante vida de produtor cultural. Tudo era uma aventura.
— Muitas noites passei colando cartazes na chuva, no frio — recorda.
O jornalista Renato Henrich, pela sua intimidade com os meios de comunicação, fazia a distribuição do material de divulgação e agendava entrevistas. Da Casa da Cultura, Ferronato reconhece a grandeza e a afinidade com a arte expressada pelas atenciosas Dulce Marotto e Luiza Motta, sempre dispostas a viabilizar os espetáculos.
Fortes emoções
Ao retornar à Casa da Cultura, depois de oito anos, Ferronato deixa-se envolver pelas surpresas. Nos corredores da administração e dos camarins, cartazes de sua produção decoram o ambiente. No cartaz de Lua Nua, com Elisabeth Savalla e Octavio Augusto, Ferronato identifica com espanto a letra do amigo Renato Henrichs escrita no rodapé. Imediatamente sacou o celular e faz uma foto para enviar ao companheiro de produção. A mesma emoção o comove ao ver sua letra no cartaz da peça Bailei na Curva.
No camarim, Ferronato recorda dos shows de Nana Caymmi e Rosinha de Valença, de Ary Toledo e do pianista Arthur Moreira Lima. O cartaz do Grupo de Danças Raízes, que se apresentou em dezembro de 1990, traz as lembranças de ter produzido a trilha sonora.
A década memorável
A década de 1980 foi rotulada como a década perdida. Período militar, abertura política, retorno da democratização, recessão, desemprego, inflação, Constituinte, Plano Cruzado, Guerra Fria, queda do muro de Berlim. Tudo afetou as expectativas dos brasileiros. Mesmo sendo constrangida por esses fenômenos, Caxias do Sul tinha uma cultura que resistia.
A inauguração da Casa da Cultura, em outubro de 1982, veio acompanhada da inauguração do ginásio do Recreio da Juventude, em setembro, com show de Alceu Valença. O ginásio abriu um espaço cultural que iria ser o palco de bandas e artistas como A Cor do Som, Titãs, Paralamas, Ultraje a Rigor, Rita Lee, Alceu Valença, RPM, muitos trazidos por Ferronato.
O Parque da Festa da Uva, em 30 de outubro de 1982, recepcionava um acampamento gigantesco em que a galera reverenciou o Cio da Terra. Artistas, políticos, estudantes e jovens em geral viveram três dias de uma magia cultural e uma confraternização que chegaram a ser comparados aos dias do Woodstock americano.
Música
Luiz Carlos Ferronato é autoridade musical. Atuou como DJ entre 1978 a 1985, e comercializava sofisticados equipamentos de som na sua loja Áudio Caxias. Atualmente, Ferronato contabiliza uma coleção de 10 mil discos, entre vinis e CDs.