Se a identidade do cinema nacional tivesse um rosto, é bem possível que fosse o do baiano Antonio Pitanga. Dono de um sorriso que mais parece um farol a guiar a afirmação do brasileiro nas artes, Pitanga estreou como peça-chave do Cinema Novo – esteve em quatro filmes de Glauber Rocha – e, desde então, participou de mais de 50 filmes e 40 produções de televisão.
Dos 78 anos vividos, são mais de 60 dedicados a atuar, atividade que realiza com força visceral. Nessa caminhada, seu talento versátil cruzou com diretores como Rogério Sganzerla, Paulo César Saraceni, Sérgio Resende, Zelito Vianna, Karim Aïnuz, Carlos Reichenbach, Hugo Carvana, Silvio Tendler, Fábio Barreto, etc. A trajetória de Pitanga passa por diferentes escolas do cinema e remete, naturalmente, a importantes debates que construíram a evolução do país. Essa história foi contada pela filha, Camila Pitanga, em parceria com o diretor Beto Brant, no documentário Pitanga, exibido durante o 45º Festival de Cinema de Gramado. Na Serra, o ator recebeu ainda o Troféu Cidade de Gramado pela contribuição gigante ao cinema. E ao Brasil.
Confira a entrevista que Pitanga concedeu ao Almanaque.
Almanaque: Conta um pouco sobre a sua ligação pessoa com o Festival de Cinema de Gramado.
Antonio Pitanga: Gramado tem e teve com o cinema brasileiro um dos momentos mais importantes do país. Foi aqui que em décadas difíceis de uma ditadura, de uma perseguição, que a gente encontrava a nossa tribuna cidadã. Essa tribuna cidadã fez o cinema brasileiro entender a importância do festival e Gramado também entendeu que era possível fazer um projeto, junto com o festival, de cidadania mesmo. Criou-se esse elo no qual todos os anos, a partir de 1973, eu vinha para Gramado não só exibir os filmes, mas criar grandes debates que iam noite adentro. Quando esse movimento acontece, primeiro vieram os gaúchos de várias partes do Rio Grande do Sul e depois várias pessoas de todas as partes do país vinham endossar um movimento contra a ditadura e a perseguição. Um movimento único de uma cidade que escancaradamente abriu as portas e fez com que nós tivéssemos o maior respeito e entendêssemos que nesse respeito criávamos uma tribuna cidadã que ecoava pelo país inteiro.
O Luiz Carlos Barreto comentou aqui no Festival que o cinema é como o espelho de um país. Você concorda?
Com certeza. É o arauto de um país, o artista é o arauto. Por ser assim, é que na Grécia Antiga, berço ou fonte da cultura, nasce a democracia. Mais do que o espelho, é um movimento humano que dá razão à genialidade, ao comportamento da criatura. Esse é o cinema, que dá espelho como um instrumento socializador.
Quais são suas as memórias mais especiais com relação ao cinema?
Eu começo vendo o teatro à distância, bem distante. Eu começo me apaixonar pelo teatro entre a rua e o clube, tinha um gradio, uma base de ferro que eu via as pessoas ensaiando, mas não podia entrar nesse clube porque ele era racista, não entrava negros. Eu faço amizade com esse pessoal e começo a querer fazer teatro. O cinema, com Bahia de Todos os Santos (seu primeiro filme, do qual herdou o sobrenome do personagem, Pitanga), é que vou fazer um teste ousadamente e aí começa a minha carreira, em 1949. O Glauber foi ver. Depois me disse: “quer ser ator, precisa fazer teatro”. Ele me leva para a universidade de teatro da Bahia e eu começo minha carreira aí. É a cultura que me dá o primeiro passaporte para a cidadania. Daí eu começo a ser alguém, começo a fazer uma série de filmes na Bahia. Começa todo um movimento baiano, antes dificultado por um preconceito não só racial. Havia um preconceito contra o artista muito grande. As famílias de bem não queriam, mulher se fosse artista era prostituta, ator era veado. A gente entendeu que a cultura é um corpo só, então a gente criou uma família, caminhava nesse universo entendendo a força de uma cultura. Meu nascimento como é exatamente na contramão, primeiro porque eu sou negro e é uma Bahia de 90% da população negra e era o Estado mais racista do Brasil. Segundo, eu mesmo negro, quero ser artista. Acho que eu construo minha carreira a partir de desafios, me espelhando em movimentos como nouvelle vague ou neorrealismo e inaugurando uma maneira de interpretar intuitivamente, trazendo para o cinema um movimento emocional, de gente. Era um movimento que cristalizava um representante do povo, ele era sincero. Se você assistir a um Barlavento ou um Bahia de Todos os Santos, não vai encontrar aquilo num Marlon Brando, Sidney Poitier ou Alain Dellon. Acho que começa a força e a afirmação do cinema brasileiro nessa consciência dessa brasilidade. A sociedade brasileira não aceitava esse movimento de ter seus representantes, nós cortamos colonização cinematográfica europeia, americana, e adquirimos um movimento nosso, autoral. São trabalhos com personagens brasileiros, esse é o primeiro movimento que vem também como afirmação do cinema brasileiro. Foi esse movimento que recebeu Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, em 1959, para fazer um debate com a gente da Bahia. Esse movimento deu brasilidade e desembocou nesse 2017, onde o melhor cinema do mundo está sendo feito aqui, por causa dessa descentralização e dessa riqueza de culturas.
O senhor tem gostado muito das novas produções, então?
Muito, muito. Depois do momento Collor, que veio para dar um tiro na esta da cultura, ele emerge de uma maneira avassaladora. Você vê todos os Estados fazendo cinema e descentraliza de uma maneira gigante, e se mostra a força da cultura de um país.
Como o senhor avalia hoje a inserção dos artistas negros? Houve evolução?
Acho que não mudou muito, não. Se você for pensar, matematicamente, os primeiros passos do cinema brasileiro, o país não tinha mais do que 60 milhões de habitantes e hoje, em 2017, temos quase 206 bilhões, proporcionalmente a gente não atingiu essa cidadania onde os direitos são iguais para todos. Eu penso o movimento do negro igual ao movimento da mulher, proporcionalmente é muito pouco o que a gente conseguiu, ainda falta muito. Ter acesso ao tudo, estar em áreas estratégicas, não estar ganhando aquém do homem branco, loiro, alto... macho. Quem não conhece o início desse movimento vai dizer que a participação negra está sendo muito grande, aceito até que as pessoas pensem assim. Mas eu sempre quero mais, eu era bom em matemática e não está fechando a conta. Na dramaturgia, ainda é muito tímida a representação desse Brasil que está nas ruas, nas vilas, nos Maracanãs da vida. Eu também não gosto e não aceito e não me acho ator negro. Eu sou ator. Ainda estamos nesse estigma. Claro que o movimento de hoje e toda essa revolução da tecnologia, essa aproximação dos mundos e das pessoas, tende a ter uma resposta melhor do que na minha época, onde havia uma sociedade colonizada, europeia, que não aceitava isso. As mentes estão abertas com toda essa revolução e é nisso que eu cobro: quero mais. Você tem uma televisão que é uma concessão e tem que prestar serviço, que as pessoas possam, na sua autoestima, se ver.
Qual a sensação de ter a sua história contada pela Camila, sua filha, no filme que ela dirigiu com Beto Brant?
A sensação é de uma emoção ímpar. Primeiro movimento foi ela escolher ser atriz, você nunca quer que os seus escolham sua carreira por causa dos percalços da vida (risos). Mas ela escolhe ser atriz e defende essa carreira com uma hombridade, com um entendimento de relacionamento com seus pares de uma beleza, de um respeito. E aí ela me convence que quer fazer um filme, descobre que minha vida tem uma história, seja da família, do cinema, dos amores, ela descobre e se junta com o Beto e me convence. No primeiro momento tomei um susto. Mas ela me mostra que estava certa, porque o filme conta a história de um cara que está na década de 1950, 1960, e esse cara está contando a história de tantos caras, com uma vontade única de um país democrático. Quando ela mostra isso, muitas pessoas se surpreendem porque o que dizíamos naquela época, 1960, aproxima uma família baiana, uma família carioca. Essas portas que eu abri lá atas, a Camila abriu agora para mim, me trouxe para primeiro plano com esse filme. Esse gesto dela é tão nobre, de tanto amor e tanto carinho que me emociona.
Sobre política
"Hoje, não pensava que estaria vivendo outra vez isso. Mas, de qualquer maneira, se é ruim com a democracia, pior sem. Quando a gente vê toda essa corrupção, eu sempre penso que o político não entra ali andando, ele entra com o voto. Se nós não temos essa consciência, esses caras podem fazer a bagunça que estão fazendo. O erro não está na democracia, é como a gente entende a democracia. Como um Maluf, um Jucá, um Bolsonaro, um Temer, como eles chegaram lá?"