Quando e por que o Brasil começou a transformar não mais os seus ex-big brothers, mas sim alguns de seus mais proeminentes intelectuais em popstars formadores de opinião? Rodeado por uma dezena de jornalistas e prestes a palestrar para uma plateia que em poucas horas esgotou os ingressos para assisti-lo em Caxias do Sul na última quinta-feira, Mario Sérgio Cortella, um desses pensadores onipresentes nas mídias convencionais e digitais, esboçou duas razões para a própria condição de popstar.
– Primeiro, as plataformas digitais fizeram com que houvesse uma difusão muito mais rápida de coisas que os jovens antes não assistiam, como palestras e debates, e então eles passaram a acompanhar. Antes nós estávamos só nos livros, nos jornais e na academia, e ao entrarmos no mundo da internet, houve uma divulgação maior. Em segundo lugar, há um desgaste em relação ao mundo da tecnologia e uma preocupação muito séria em quanto ao sentido das coisas e em pensar mais a vida, a não ter uma vida que seja automática, robótica, e nesse sentido a filosofia ajuda um pouco. Por isso (o filósofo) Luiz Felipe Pondé, (o jornalista e professor) Clóvis de Barros Filho, (o historiador) Leandro Karnal e eu de repente nos tornamos pop. É curioso, porque a gente é parado por pessoas que pedem para tirar foto, e isso um tempo atrás seria estranhíssimo. Mas hoje é normal e dá um gosto imenso – especula.
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Autor de 32 livros e discípulo de Paulo Freire, com quem trabalhou por 17 anos além de tê-lo como orientador de doutorado, não é apenas a barba mais conhecida, mas também a voz mais representativa da educação no Brasil atualmente. Filósofo, palestrante, escritor, colunista de rádio e articulista de jornais, prefere se apresentar como professor. Foi, portanto, para mais de 750 colegas de profissão que Cortella dirigiu no UCS Teatro a mais recente palestra que está rodando pelo Brasil, chamada "Educação e Gestão de Conhecimento", na qual reflete sobre as novas necessidades para os docentes em sala de aula diante de alunos que chegam à escola saturados de informações.
– Fuja da professora velha! (pausa dramática) Mas não da idosa, e sim da velha, que é aquela que se acomodou na profissão. Porque antigo é diferente de velho. Quando vocês vão numa pizzaria procuram pela que tem os melhores micro-ondas? Não, vocês procuram a que tem fogão a lenha – ilustra.
Mas abordaremos a Gestão do Conhecimento mais tarde.
É nos primeiros 20 minutos da palestra que o paranaense nascido em Londrina há 63 anos, e há meio século radicado em São Paulo, dá os maiores indícios da razão de ter se transformado em um fenômeno capaz de vender 500 mil exemplares de um único livro, colecionar um milhão de seguidores nas redes sociais e ter palestras com mais de 2 milhões de visualizações no Youtube. Mais do que a sabedoria, chama a atenção a espirituosidade rica em conteúdo, capaz de arrancar gargalhadas dignas dos melhores comediantes stand-up (talvez não seja à toa que ele ministre a palestra de pé, a despeito da cadeira disponibilizada para ele sentar). Como ao comentar a razão de não vender livros em suas palestras.
– Esses dias, uma senhora subiu ao palco e perguntou se eu tinha livros para vender. Respondi que não podia vender pois não emito nota fiscal de produtos, apenas de serviços. Aí ela disse: "mas não precisa nota fiscal". Ao que eu respondi: "a senhora quer comprar meu livro sobre ética e me diz que não precisa nota fiscal?" Um de nós dois está errado (gargalhadas gerais na audiência).
Outra aproximação entre o filósofo pop e a geração que chegou ao sucesso enchendo casas de espetáculo com shows de humor é o uso da fala, nada mais que a fala, como recurso. Por 1h30min, o palestrante brinca sobre insegurança:
– Tenho uma filha de 27 anos, advogada. Um dia ela me ligou porque queria saber como ter a mesma segurança que eu tenho, pois precisaria enfrentar um juiz pela primeira vez. Eu disse pra ela: "filha, é simples. É só esperar 30 anos".
Também faz graça com o amor dos professores pelo ofício que para ele não é só um emprego, mas sim uma obra de vida.
– Ninguém sabe o que é cuidar de 30 crianças ao mesmo tempo, sendo que a maioria, em vez de ter "hormônios", parece que tem "demônios". Sem contar a inveja que dá daqueles amigos que começam a trabalhar 8h30min, sendo que a essa hora a gente já está no intervalo tomando café com bolacha, que é a única coisa que nos dão pra comer. Ninguém faz ideia de quanta bolacha a gente já comeu na vida (risadas estrepitosas).
Informação não é conhecimento
É só na parte final da palestra que o ex-secretário de Educação de São Paulo aprofunda a questão da gestão do conhecimento, tema pelo qual tem se debruçado com mais afinco após algumas imersões no mundo da gestão empresarial e do propósito de vida, que também renderam livros, palestras e entrevistas. O centro do argumento está na necessidade de repensar a educação de forma a oferecer aos estudantes conteúdos que tenham a ver com o seu cotidiano.
– Quando a maçã caiu na cabeça de Isaac Newton, ele só descobriu a teoria da gravitação universal porque já era professor de Física em Cambridge. Não existe conhecimento sem preocupação prévia com o conteúdo. Sem isso, há no máximo informação. Os alunos adoram a escola, basta ver a bagunça que fazem no intervalo. O que eles não gostam é das nossas aulas. Um menino de 14 anos, sentado por quatro horas quieto e sem poder usar o celular, só não vai embora porque a sala de aula tem uma arquitetura à prova de fugas. Se a saída fosse nos fundos, como num teatro, o professor ia virar para escrever na lousa e, quando voltasse os olhos novamente para a classe, ia descobrir o verdadeiro significado de ensino a distância (gaitadas escancaradas).
Era um público de professores, mas bem poderia ser de estudantes, empresários, pais e mães, um time de futebol, um grupo de astronautas, não importa. Com a mente ágil de quem parece já ter pensado em tudo, Cortella oferece respostas entusiasmadas e entusiasmantes, transforma o conhecimento erudito em popular, ajuda a enxergar que nunca estaremos prontos, mas devemos sempre estar atentos. Um avalizador que já leu mais de 10 mil livros para poder nos tranquilizar que a vida que vale a pena é a imperfeita, que a gente vale menos pelo que sabe e mais pelo que não sabe. Inquietações que no recôndito das bibliotecas e salas de aula a filosofia trabalha há séculos, mas que com Cortella e um punhado de colegas que souberam misturar erudição e poder de comunicação ganharam nova dimensão. Só não vale destinar a Cortella o elogio de que ele tem o "dom da palavra".
– Me dá uma raiva quando ouço isso. O conhecimento é uma construção, Deus não me chamou e disse que eu iria falar em público. Estou na escola como aluno e professor há 60 anos. Aí a pessoa vira e me diz: "o senhor tem o dom da palavra. Dá vontade de remetê-la àquele local certo e sabido (risos, risos, risos).