Ela é doce e geralmente vem acompanhada de um pãozinho – se for recém-tirado do forno, então, melhor ainda. A chimia ou marmelada vai muito além do simples doce feito à base de frutas e açúcar servido no café da tarde, juntamente com o pão. A tradição gastronômica mexe com a memória afetiva de muitas famílias, principalmente aquelas formadas por descendentes de italianos e alemães. Na Serra Gaúcha, reduto de imigrantes europeus, dificilmente há alguém que não tenha provado a iguaria ou pelo menos visto um recipiente cheio dela na casa da avó ou de uma tia.
A fabricação caseira da chimia é bastante comum no interior – mesmo que a produção abasteça muitos moradores da cidade que se rendem ao gostinho da colônia. São essencialmente mães, tias e avós que aproveitam a safra de frutas como figo e uva para encherem dezenas de potinhos do doce.
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É o caso da família Deon, em São Gotardo, interior de Flores da Cunha. As irmãs Marisa, 51 anos, Mari Neiva, 55, e Zanete, 59, levam adiante a tradição ensinada pela mãe Iolanda, que morreu há 14 anos. Quem cede o espaço para a produção das chimias é Marisa, mas todas contribuem como podem: desde o recolhimento das embalagens plásticas até a preparação da fruta para o doce.
– É uma forma de lembramos a mãe e também de nos reunirmos para conversar. É uma troca: uma traz um bolinho, a outra faz um chimarrão. E ficamos ao redor do tacho, porque não pode parar de mexer nunca, senão gruda no fundo e perdemos toda a chimia – ensina Marisa, reforçando que a hora de raspar o tacho é um dos momentos mais aguardados.
Preparo
O ritual começa no início da tarde. Por volta das 13h, o tacho (herança de dona Iolanda) já está no fogo. A receita é simples: água, fruta e açúcar – algumas especiarias como canela e cravo podem ser colocadas, conforme o gosto de quem prepara. Todos os anos, as irmãs Deon preparam chimias de uva, figo, maçã, pera e abóbora.
A uva abriu a temporada do doce neste ano, na casa de Marisa. Nesta semana, a frutinha de cor roxa deu lugar ao figo dentro do tacho. Cerca de 12 quilos de açúcar e 24 quilos da fruta formaram a mistura doce e escura. Depois de mais de duas horas no fogo, o resultado: 25 quilos de figada, que posteriormente será distribuída entre os irmãos e sobrinhos da família Deon.
E o segredo da receita? Zanete arrisca-se:
– Muito amor.
Além do amor, claro, Mari Neiva explica que outros cuidados devem ser observados ao preparar a chimia. O fogo tem que ser moderado, ao contrário, corre-se o risco de queimar a mistura. O açúcar deve ser aproximadamente a metade da quantidade da fruta – é ele que ajudará na conservação, evitando que a chimia estrague rapidamente.
– Sempre tem variações. Tem gente que coloca os pedaços maiores da fruta. Alguns gostam de usar a casca, outros não. Aqui a gente aproveita tudo, e também misturamos os dois tipos de figo (o pingo de mel e o negrito) – explica Mari Neiva.
Um costume de quatro gerações
Na casa da gerente comercial Pauline Casarotto, 31 anos, em São Marcos, o costume não é muito diferente. A tradição de fazer chimia em casa vem de quatro gerações. A bisavó aprendeu a receita com uma senhora de origem polonesa e, desde então, o doce se consagrou na família. Hoje, quem comanda o preparo é a mãe de Pauline, Leda, mas sempre com o apoio dela ou da outra filha, Carina.
– Rola aquela confusão como toda boa família italiana. Se for de uva, a discussão é: 'colocamos as casquinhas da uva ou não?' – brinca a gerente comercial.
A época da vindima é muito esperada pela família. Além da chimia, a mãe e as filhas preparam suco de uva, assam cucas recheadas com a fruta e ainda fazem súgulo – um doce de uva, com consistência de gelatina.
Apesar de jovem, Pauline sabe que dependerá dela e da irmã a responsabilidade de dar seguimento à tradição:
– Eu acho que fazer a chimia é um ritual. Cultivar, colher e transformar as frutas em um doce delicioso tem uma mágica. Enquanto se mexe o tacho, surgem histórias de gerações passadas, se toma chimarrão, conversamos. Por isso, pretendo levar essa tradição às futuras gerações, sim. Essa e outras!
Chimia, marmelada ou geleia?
A professora e pesquisadora Cleodes Maria Piazza Julio Ribeiro explica que a chimia e a marmelada se equivalem no universo gastronômico. A diferença está no contexto histórico. Enquanto, o termo chimia tem raízes na cultura alemã, a palavra marmelada é usada por descendentes de imigrantes italianos para designar doces pastosos à base de fruta (não só os feitos a partir do marmelo).
– Quando os imigrantes italianos chegam ao Brasil, eles tratam tudo como marmelada. Então, é marmelada de figo, marmelada de uva, marmelada de maçã, e assim por diante. E essa nomenclatura se mantém até hoje – explica a pesquisadora.
Em termos nutricionais, o que costuma gerar confusão é a diferença entre a geleia e a chimia. Segundo a nutricionista Natalia Stedile, as geleias são feitas com sucos de frutas e açúcar, formando uma espécie de calda densa. As chimias, por sua vez, são produzidas não apenas com os sucos, mas também com o bagaço e cascas, gerando um doce mais consistente.
– Tanto a geleia quanto a chimia apresentam teor elevado de açúcar. Por isso, a minha orientação é consumir com moderação, e sempre combinar com alimentos ricos em fibras, para reduzir a velocidade que o açúcar será absorvido pelo organismo. Por exemplo: pão integral com uma camada fina de chimia ou geleia – reforça a profissional.
Faça a sua chimia de figo
Ingredientes
:: 5 kg de figo (pingo de mel e negrito)
:: 2,5 kg de açúcar*
::2 copos d'água
*Lembre-se que a quantidade de açúcar deve ser aproximadamente a metade da quantidade da fruta, neste caso, o figo.
Modo de preparo
1. Passe os figos em uma máquina de moer ou corte-os em pedaços.
2. Misture a fruta com a água e leve a mistura ao fogo até ferver.
3. Coloque o açúcar e deixe o doce fervendo, sempre mexendo, até atingir o ponto (normalmente está pronto quando a mistura começa a desgrudar do fundo da panela. Cuide para não queimá-la!).
4. Guarde em recipientes de vidro ou potes plásticos que possam ser lacrados.