Se um dia receber de Daniel Schüür o convite para degustar uma cerveja, aceite. Primeiro, porque o caxiense de 37 anos não irá propor um brinde destes sucos de arroz e milho disfarçados que se vendem em latões e latinhas por aí. Segundo, porque o seu nome estará eternizado na cuidadosa lista de, até aqui, 197 pessoas que já compartilharam algumas das 999 variedades que Schüür experimentou ao longo dos últimos 10 anos, desde o dia em que se propôs a catalogar por rótulos cada sabor apreciado da bebida.
Comparado ao desafio atual, pode-se considerar que não foi difícil para o descendente de alemães sorver uma milha de variações de água, cevada, lúpulo e levedura. Mais duro tem sido rejeitar convites, ignorar prateleiras e manter o mouse longe dos anúncios enquanto aguarda ficar pronta a cerveja que tem reservada a senha número 1.000, elaborada pela família Schüür num cuidadoso processo de tentativa e erro. Quando a mistura der liga, por meados de abril, os amigos serão convidados a esvaziar o barril de 20 litros da American IPA, em evento comemorativo ao advento do quarto dígito. Uma jornada que em 2007, quando a maratona etílica começou, não dava amostra de chegar sequer aos três dígitos.
– Não era como hoje. Passei por todos os bares e supermercados de Caxias e encontrei oito tipos. Foi frustrante. Achei que não chegaria nem a 100 cervas. Fui salvo pela internet, conhecendo uma loja online aqui e outra ali. Nisso, alguns amigos que estavam viajando já ligavam perguntando se eu conhecia tal marca, para me trazer de presente. Assim foi crescendo – conta.
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Tudo partiu de um insight, como costumam se manifestar as melhores ideias, por vezes avessas a projetos e planejamentos. Por um anúncio de jornal, Schüür soube que seria inaugurada em Caxias a Bier Haus, pub e loja de cervejas na Rua Tronca. Como bom germânico, atendeu ao chamamento. E viu que era bom. A ponto de nunca mais parar.
Entre a lager alemã Schlenkerla, experimentada naquele dia e avaliada como "interessante e diferente", e a brasileiríssima weiss DiTriguis, homenagem ao mais icônico dos Trapalhões que recebeu o adjetivo "excelente", foram centenas de degustações com as mais diversas companhias e as mais diversas situações, todas devidamente catalogadas.
– Minha namorada já tomou comigo 483 cervejas, sendo que quando nos conhecemos eu já estava lá pelo número 400. Mas olha só que curioso... Esse Heitor (aponta para a planilha) é um grande amigo, mas só tomamos duas cervejas juntos. Vou ter que ligar pra ele e esclarecer isso – brinca Schüür, ao passar os olhos pelo ranking dos parceiros de copo.
Personal trainer, a namorada Silvia Crocoli, 30, comenta que até conhecer Daniel, só conhecia e apreciava a tradicional cerveja Pilsen. Mas embarcou com gosto no hobby:
– Achei curioso que a família dele gosta de colecionar coisas. A mãe gostava de corujinhas, tem uma prima que coleciona copos. Mas a do Daniel é diferente, porque não se trata de objetos, e sim de experiências – elogia.
Em 2013, a paixão por desbravar novas marcas passou a dividir as atenções com a fabricação da própria bebida, numa fabriqueta no porão. Schüür considera a descoberta de um sabor original e a ansiedade pelo resultado da própria produção prazeres distintos e sem comparação. Virou tradição familiar presentar os amigos com a produção caseira, em garrafas cujos rótulos são caricaturas deles próprios, caracterizados para a devida ocasião do presente, como o Natal. Parceiro de alquimia e segundo colocado entre aqueles que mais brindaram com Daniel, ostentando 381 prosit! bradados, o pai Germano Schüür, 71, professor aposentado de Fotografia da UCS, é puro orgulho:
– Tem satisfação maior para um pai alemão que um filho que fabrica cerveja em casa? E que ainda faz coleção e me convida pra beber junto? Impossível!
Daniel não sabe definir se é colecionador, sommelier, um insaciável curioso ou apenas um maluco por listas. Certeza é que há 10 anos ele já não é mais o arquiteto formado, que trabalha mantendo o estúdio de fotografia do pai em Nova Petrópolis. Em alguma escala que só o tempo saberá dizer, caminha para se tornar uma autoridade entre bebedores, como se fosse resenhista de discos ou livros. Trabalha na criação de um blog, onde legará ao mundo o conteúdo das mais de 10 pastas onde metodicamente arquivou as 999 cervejas saboreadas. E após provar a milésima, acordará em busca da milésima primeira.
– A cerveja virou meu estilo de vida. Se vou visitar um amigo, levo a câmera numa mão e a sacolinha da cerveja na outra. Vivo entre a fotografia e a cerveja, às vezes misturando as duas coisas. Mas não bebo muito, só bebo com qualidade. Com toda a oferta que tem hoje, sei que não experimentei nem metade das cervas que se pode encontrar em Caxias. Não vou parar agora. Quero ver até onde posso chegar – projeta, com a insatisfação dos obstinados.
Enxugando copos pelo mundo
Imagine o leitor que um apaixonado por vinho viaja pela França e seu mapa indica que, a poucos quilômetros, encontra-se a mítica região de Bordeaux, terra de alguns dos mais nobres tintos. Porém, é impossível adentrá-la porque o roteiro programado está atrasado e existe a real ameaça de perder o voo para o próximo destino. Transportando para o drama real de Daniel Schüür, Bordeaux seria a Bélgica, éden da cerveja reconhecido mundialmente, e que para o caxiense representa a predileção cervejística absoluta. E no entanto, durante o passeio da família pelo Velho Continente em 2008, sentiu apenas o aroma imaginado das fortes cervejas belgas.
– Passar ao lado da Bélgica e não entrar foi uma tortura. Estive a dois passos do paraíso – lamenta.
Para afogar as mágoas, Schüür desembarcou no lugar certo. Na Alemanha, enriqueceu a coleção de rótulos com 45 novidades e algumas experiências sem preço.
– Tomamos uma cerveja no bar mais alto da Alemanha, no topo de um monte a 3 mil metros de altura. Como eles vendem a cerveja em temperatura ambiente e eu prefiro gelada, enfiei a garrafa na neve e fui dar uma volta enquanto gelava. Incrível como em diversos bares alemães sequer existe refrigerador – comenta.
Também foi na Alemanha que Daniel teve a experiência mais desgostosa com a bebida. Só após entornar o primeiro gole caprichado e verificar um gosto estranho percebeu que fora seduzido por um rótulo bonito: era cerveja com Coca-Cola, mistura que depois descobriu ser comum no país de Goethe, Nietszche e Schopenhauer. Outras que desceram quadradas foram uma cerveja peruana a base de folhas de coca, saboreada no antigo território inca, e uma frutada com cereja degustada em Florença, na Itália, que o próprio dono do bar alertou que não era boa. Mas igual a quase tudo na vida, vale pela experiência.
Conhecer mais cervas estrangeiras é novo foco de Daniel. Não é sobre dar a volta ao planeta, mas sim encomendar ou importar os sabores de países as quais o seu paladar não foi apresentado. Se o mundo fosse um tabuleiro de War a ser coberto por tampinhas, já foram conquistadas 43 nações. Das 999 que experimentou, menos da metade é brasileira: 434. Alemãs são 140 e as belgas completam o pódio com 90. Até países que só se ouve falar nas Olimpíadas ou no Miss Universo, como Ilhas Fiji e Filipinas, figuram na ainda incipiente planilha internacional do cervejeiro. Se considerar que a ONU tem 193 países filiados, ainda há muito a desbravar.
FICA A DICA
Pedimos ao expert para listar as cinco cervejas que ele levaria para uma ilha deserta. Segundo Daniel Schüür, são rótulos fáceis de encontrar e de preços acessíveis. Confira:
DUVEL
Cerveja belga do tipo Belgian Golden Strong Ale, fabricada pela Brouwerij Moortgat, teor alcoólico de 8,5% vol. Devido a essa graduação alcoólica e ao processo de fermentação vigoroso, a cerveja mudou de nome. No início era Victory Ale, para comemorar o fim da primeira guerra e depois só passou-se a chamar Duvel, que significa "diabo" na língua flamenga.
WEIHENSTEPHANER HEFEWEISSBIER
Cerveja de trigo, de origem alemã e graduação de 5,3% vol. Produzida na região da Bavária pela cervejaria mais antiga em funcionamento do mundo, desde 1040. É muito boa, refrescante e por não ser filtrada, sua aparência é opaca.
TRAPPISTES ROCHEFORT 6
Cerveja de 7,5% vol. do estilo Belgian Dubbel. A cervejaria fica localizada dentro da Abadia de Notre-Dame de St. Remy e produz cerveja desde 1595. É uma legítima trapista. Sua espuma tem uma boa duração e formação e sua cor puxa para o marrom avermelhado.
HEILIGE WEISS
Feita aqui no nosso estado, em Santa Cruz do Sul. Trata-se de uma cerveja de trigo, com 5,1% vol. A cervejaria foi fundada em 2010 e a tradução de seu nome do alemão é justamente "Santa", em homenagem à cidade. Foi eleita melhor cervejaria da America do Sul 2015 na Southbeer Cup V.
CACHORRO OVELHEIRO
Um cerveja feita aqui perto da gente, em Farroupilha. Estilo IPA, com teor de 6,5%, foi medalha de ouro no concurso brasileiro de cervejas. Boa presença do lúpulo, bom corpo, notas frutadas bem equilibradas e saboroso retrogosto.