Os homens, as mulheres, os gays, os trans, a esquerda, a direita, a filosofia, a autoajuda, a liberdade, a repressão, amor e ódio, Temer, Lula, Dilma, o fim das fronteiras, o mundo líquido, as razões todas que vão às ruas e o raciocínio que tenta refletir sobre o mundo contemporâneo tendo a história como suporte, o convívio como possibilidade e a ética como mediação para uma humanidade sustentável. Eis alguns dos rizomas derivados de uma conversa com o requisitado e popular historiador Leandro Karnal.
Gaúcho de São Leopoldo, professor, historiador, graduado em História pela Unisinos e doutor pela USP, Karnal atualmente é professor universitário na Unicamp. Ele é autor de vários livros sobre a história dos países e sobre o ensino de História, e palestra em sobre vida, história, religião, política, filosofia, ética e comportamento humano.
O que segue foi produto de uma entrevista coletiva de uma hora, concedida há dez dias, quando ele esteve em Caxias para uma palestra que integrou as atividades festivas dos 30 anos do Sinpro de Caxias.
A educação fracassou?
– O grande Darci Ribeiro achava que o fracasso da educação era fruto de um sistema. Num sistema, o fracasso não é um acaso. Eu sou um pouco mais pessimista. Em primeiro lugar eu não acho que as massas, ou grandes grupos de pais, alunos, professores e outros, tenham uma posição clara sobre projetos como o Escola Sem Partido. A maioria absoluta não sabe o que é e não sabe quais são as propostas e respondem na forma dominante do conservadorismo, que é a marca do pensamento brasileiro. Dentro desse conservadorismo, depois da década de 1930 surge uma esquerda barulhenta. E a esta esquerda barulhenta, minoritária e urbana, juntou-se, hoje, a direita barulhenta. Esta é uma novidade no Brasil.
E o que deriva disso?
– Isso é propiciado tanto pelas redes sociais quanto pelo fato de que crise econômica e política desperta crise social. O medo do fascismo no passado era o medo de rebaixamento social. O esteio do fascismo é o medo social. À medida em que comportamento alternativos eram proibidos - mulher não votava, homossexuais eram contra a lei e negros não tinham direito – havia tranquilidade do pensamento conservador. Depois veio a fase da tolerância. Hoje nós vivemos a fase da celebração. Existir um 8 de março, dia internacional da mulher, um 28 de junho, dia do orgulho gay, e um 20 de novembro, dia da consciência negra, existir um aparada do orgulho gay, existir um feriado de Zumbi quase nacional, faz com que velhos medos não aquietados ressurjam: o medo sobre o feminino, a misoginia, é o medo mais estruturado e antigo e sólido de todos, renasçam.
Por que o preconceito contra o feminino?
– Por que o feminino é o mais antigo fenômeno, é mais antigo que a identidade de gênero e a identidade sexual. A sociedade é mais tolerante com o gay Rock Hudson do que com o gay drag, a travesti, outras identidades de gênero. No momento em que a sociedade dilui a fronteira da lei e do preconceito e você expõe as pessoas à diversidade. Hoje, no planeta terra, existe sete bilhões de gêneros. Dizer isso às pessoas é quebrar uma certeza que lhes animou durante muito tempo e dar a elas aquilo que de mais angustiante possa existir, que é a liberdade. A repressão é profundamente tranquilizadora.Este é o embate das ruas?Tem muitos embates nas ruas. Um deles é a reação ao medo, aquilo que a gente chama de histerias sociais. Estas histerias podem ser canalizadas por um grupo político. Esse é o medo que pode ser instrumentalizado. E tem medo que são mais estruturais, como os medos de gênero, pois eles conferem esta identidade às pessoas. Os medos de gênero conferem uma zona de conforto e o ódio é um elemento político. Quando você encontra um ódio, constrói muita coisa. Uma nação pode ser criada através do ódio. Os americanos, que não têm uma identidade nacional, decidiram que, ao se formarem, combateriam os indígenas, depois os mexicanos, os ingleses, no século XX os comunistas e no XXI passaram a enfrentar o fundamentalismo islâmico. Sem estes elementos, não haveria Estados Unidos. O ódio é um elemento muito agregador.
As redes sociais são simulacro da comunicação?
– Simulacro é uma palavra forte, pressupõe que exista uma comunicação verdadeira e essa seja falsa. Quando Umberto Eco diz que a internet deu acesso e democratizou a imbecilidade, ele tem um foco: o imbecil é aquele ser que não tem uma formação sobre o tema e emite só preconceitos. Há cem anos,ele emitia este preconceito no bar. Publicar um livro era difícil. Hoje, ele aperta um enter. O problema é confundir intuição imediata com liberdade de expressão. Quando se trata de um tema filosófico, histórico ou técnico, a grande questão é que as pessoas todas tornaram-se especialistas em tudo. Há pouco me manifestei sobre um professor que se alegrou por uma menina que perdeu um olho numa manifestação. Eu posso ter todas as opiniões sobre manifestações ou Lula, mas exaltar a violência é crime. Então, isso não é opinião. A liberdade de opinião pressupõe limites. A constituição diz que não é possível louvar o crime.
É um momento de ceticismo ou de esperança?
– É preciso ser um pouco cético para ter esperança. Esperança é uma vitória na utopia. Utopia, esse neologismo criado pelo Grande Thomas Moore, como um não lugar. Qual a função da utopia? É corrigir o presente. É por que você tem na cabeça a ideia de um Congresso perfeito que você pode corrigir, criticar e combater os 81 senadores. É a utopia que faz você casar, que faz você amar, ter filhos. A utopia é dada a cada amanhecer, a cada novo ano. Essa esperança dada pela utopia é muito interessante. Não-utopia e o realismo absoluto é um problema.
A internet educa e faz avançar as novas gerações?
– Existe um vasto registro histórico dizendo que todas as gerações consideraram a seguinte despreparada. A reclamação de que os jovens não leem mais como a gente leu vem de Platão. A ideia de decadência traduz o seguinte: nós estamos envelhecendo, o mundo que me deu origem está perdendo o sentido. Na Nova Inglaterra, analisei uma escola onde todos os alunos são alfabetizados no tablet. Uma professora conservadora perguntou: “como eles vão fazer quando não tiverem o tablet”? A professora de ensino fundamental foi brilhante: “como a senhora escreve quando não tem caneta”. Como professor há 34 anos vejo que a inteligência não diminuiu. O que mudou foi a forma de perceber as coisas. A inteligência dos jovens é menos focada, mais imagética e holística, é mais perspicaz e menos analítica, é mais visual do que textual. Mas não posso dizer, em nenhum momento, que o jovem de hoje tem um QI menor. Ele tem um QI diferente do que a minha geração. O professor hoje tem um modelo de aula do século XIX, nasceu no século XX e está falando com a geração do século XXI, preparando uma realidade para o XXII. A tecnologia é sempre neutra. A internet dá acesso a informações fabulosas, pode ajudar muitíssimo no processo de conhecimento. O problema não é a internet. O problema é como você utiliza a rede. Hoje o debate é sobre a epistemologia, sobre como você valida a informação: como validar, como distinguir, como referendar. Há estudos na Unicamp sobre o tempo que uma mentira na internet leva para aparecer como uma verdade ou um axioma, chegando até a artigo científico.
Como se chegar à consciência política com um Estado como o de hoje?
– O Estado é perfeito para a consciência política por que pela primeira vez o rei está nu. Não há nenhuma dignidade revestindo o rei. As pessoas olham para o Temer e começam a vaiar, é como Pavlov. O Estado está nu. Tanto que aquele empresário acreditou que o nome do presidente era Fora Temer. Talvez por isso esse seja o momento da consciência. Uma cena como a que vivemos este ano, com a Câmara votando o impeachment invocando o marido honesto que seria preso no dia seguinte, foi o Brasil se encontrando com seus deputados com seu Português canhestro, sua gramática claudicante. Foi oi Brasil se encontrando com o Brasil. A maior parte do povo brasileiro teve vergonha. Além de ter claro que o Estado está nu, temos também a convicção de que o poder é feito por eleitores. Você pode ficar decepcionado com o Estado que está aí ou com os eleitores que fizeram este Estado.
O conservadorismo cresce?
– Nós sempre tentamos golpe e contra golpe. A política é feita por sístoles e diástoles. Tivemos um processo duplo durante o período Lula, um pouco com Dilma, de avanços de propostas de esquerda, e ao mesmo tempo algo terrível, da associação da ideia de falta de ética à esquerda. Talvez este tenha sido o processo mais conservador de todos que o governo do PT tenha feito. A partir de hoje, quando falar “esquerda” a média do eleitorado vai associar à corrupção, Petrobrás, mensalão. Mesmo assim, em meio a estes problemas, tivemos grandes avanços como a Lei Maria da Penha. Ela permitiu quantificar a extensão da violência contra o feminino. Não permitiu ainda resolver, mas permitiu que víssemos a extensão desse verdadeiro genocídio. É como se pela primeira vez fôssemos confrontados coma cultura do estupro. Isso pode nem estar ligado à esquerda ou ao PT, mas a internet favoreceu esse debate. E os debates estão aí, nas ruas. Diria que os jovens de hoje são mais politizados do que os da minha geração. Há muitos jovens presentes nas manifestações de esquerda ou de direita. Mas, se houve cem mil nas ruas em São Paulo protestando contra o Temer, há 11 milhões e 900 mil paulistanos que não foram às ruas. É a maioria silenciosa, que talvez seja a mais importante.
Como se comportam os veículos de comunicação?
– A imprensa reflete a sociedade brasileira, dividida e com interesses distintos. Ela serve a interesses distintos. Existem interesses claros na seleção ou omissão de determinados assuntos, na escolha de verbos como “o movimento invadiu” ou “o movimento ocupou”. Não vejo problema nenhum quando o New York Times diga em editorial que apoia Hillary Clinton. Ao ler as notícias e reportagens fica claro que há uma linha editorial definida. O mais importante é que existam órgãos plurais. A contrário das pessoas, nunca desejei uma imprensa neutra. Mas gostaria que fosse honesta e não invente fatos.
Onde há exemplos positivos no Brasil?
– Na medida em que fracassa o Estado gomo gestor e como ideia, têm surgido ONGs e movimentos nas periferias. Um exemplo para combater a mortalidade infantil foi uma ação fora do Estado, liderada por Zilda Arns, que representou uma efetiva ação contra a mortalidade infantil. Desconfio da ideia do Estado redentor, mas reconheço que, para as classes mais baixas, o Estado ainda é fundamental. Sou um intenso defensor do Bolsa Família por que ele representou distribuição de riqueza e retirou gente da miséria.
Há um embate entre filosofia e autoajuda?
– A experiência filosófica ou de outras áreas humanas está centrada no indivíduo, no problema do indivíduo, e não numa fórmula. A autoajuda clássica, inaugurada em 1936 com o livro Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, está centrada em fórmulas, e essas fórmulas são eficazes. Eu nunca duvidei da eficácia dessas fórmulas. Por que? Por que cientificamente o placebo funciona. Todo o científico. Os médicos defendem o placebo. Nós temos um enorme poder de sugestão. A diferença entre a filosofia e a autoajuda está essencialmente na problematização que a filosofia oferece ao contrário da autoajuda, que oferece fórmulas. Nunca haverá dez passos para a felicidade na filosofia. Mas sempre haverá uma frase muito próxima da autoajuda que dirá “depende de você”. E esse depende de você significa depende um esforço, não de uma técnica ou de uma mágica ou de uma repetição. É difícil explicar isso para as pessoas, mas eu quero sempre enfatizar, para não parecer injusto, que a autoajuda é eficaz. Ela é uma espécie de filosofia homeopática. Ou seja, as pessoas que estão lendo um livro têm uma crença. E essa fórmula não é simples. Tem pessoas que compram livros de grandes empreendedores e acreditam que lendo o livro serão grandes empreendedores. O problema é que aqueles empreendedores não leram aquele livro. Então, utilizando uma ideia que é clássica, e é uma ideia histórica: Mozart, quando estava com quase 40 anos, próximo de morrer, recebe uma carta de um menino de 15 anos de Praga, onde ele estreara várias óperas, e esse menino pergunta como se fazia uma ópera. Mozart respondeu que era muito cedo fazer uma ópera com 15 anos, que era muito complexo. O menino respondeu então que Mozart tinha feito sua primeira ópera com nove anos. Mozart respondeu então, em sua última carta histórica: “é, mas eu não perguntei a ninguém como se fazia”. Nunca ataquei, nunca supus danoso além ler o livro “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. Lá diz, por exemplo, que a fórmula da sociabilidade é sorrir muito a falar, guardar o nome das pessoas, demonstrar interesse na vida delas. São fórmulas eficazes. Eficazes para aquele tipo de comportamento plastificado para algumas redes de fast food: “bom dia, em que posso ajudar?”. Eficaz para este tipo de comportamento de venda, de marketing. Isso é eficaz, essas fórmulas retóricas funcionam. A filosofia oferece, por exemplo, em primeiro lugar a dimensão prática da existência: não importa quão positivo for seu pensamento, você vai morrer. A morte é uma realidade absoluta. Você pode se conformar ou se irritar com ela. Se você for muito positivo, você vai morrer. Se for muito negativo, vai morrer. Logo, a morte. Como diz Sartre, nadifica a vida. Torna a vida algo que não tem sentido em si. Logo, a autoajuda faz acreditar numa essência humana e que essa essência pode ser conseguida com a vontade. Por isso que alguns livros de autoajuda se aproximam do pensamento mágico, não todos, ao afirmar que pensando acontece. Um dos mais famosos deles conta o seguinte segredo: se você pensar, o universo conspira ao seu favor. Atire-se do alto de um prédio e pense positivo, pense que você pode voar, pense que você não é mais pesado que o ar, que Newton vai ser muito mais forte que o seu pensamento. Se você disser esse teto está caindo, este teto está caindo, este teto vai cair, ele não cai. Por que o que vai fazê-lo cair não é o pensamento, nem a energia vocal, mas é uma estrutura de co9ncreto que, enfraquecendo, pode cair. Porém, o pensamento pode ser o início da ação. E a ação provoca mudanças. Eu acho que a autoajuda funciona e funciona para a maioria das pessoas como certos livros leves, best sellers, funcionam para a maioria das pessoas. Não há problema em você ler um livro leve e chamativo, o problema é você acreditar que aquilo funciona.
E a aproximação com as filosofias orientais?
– Como experiência do indivíduo crítico, a filosofia é uma experiência grega. O pensamento é universal. Quando os taoístas chineses, quando os confucionistas, quando a experiência do buda histórico Sidharta Gauthama, quando vários pensamentos densos existem, não quer dizer que o pensamento seja um privilégio europeu. Muito pelo contrário. Porém, a filosofia com este nome, com esta experiência centrada no indivíduo e no pensamento crítico, é um fenômeno grego. O pensamento é um fenômeno universal, a filosofia é grega. E eu pertenço a um grupo que acredita que a filosofia seja um legado ocidental. O pensamento, a inteligência ou o que se possa chamar, existem em outros lugares também. Acabei de assistir a um alonga palestra jainista na Índia. Muitas coisas dos jainistas dialogam, por exemplo, tanto com o estoicismo filosófico ocidental quanto com o cinismo, escola que pregava o despojamento. Porém, a ideia filosófica é uma ideia ocidental. O que não é um mérito. Não quer dizer que o Ocidente é melhor do que isso, que mate menos, que seja menos violento, mas ela é uma ideia ocidental. O estilo arquitetônico jônico, dórico, coríntio, é grego, o que não quer dizer que o estilo persa, chinês, nem melhor, nem pior.
Qual o ônus e o bônus de ser alguém tão conhecido?
– O bônus favorece ao narciso. Não tenho esforço para publicar, tenho convites que representam uma retribuição pessoal e financeira. Mas tem chatices incomensuráveis. As pessoas têm comigo uma intimidade que não tenho com elas. Há tempo, depois do lançamento de um livro em Porto Alegre, fui jantar com minha família e um fã veio, sentou à mesa, e ali ficou. O elogio mais frequente que ouço é “você é genial, cara, diz tudo o que eu penso”. Falta aí ao menos uma semana de terapia. Falta Freud, fata sexo, falta um pouco de vida própria para você entender que gente famosa é igual a gente não famosa, só que famosa.