Sonia Braga é um filme. Um enredo sobre uma menina que aos 14 anos sai da escola e se joga na vida. Foi se inventar no teatro, no cinema, na televisão. Intuição pura. A trajetória toda é a justificativa para o Troféu Oscarito, que lhe foi entregue na abertura do Festival de Cinema de Gramado, sexta-feira à noite.
A homenagem inclui a projeção de Aquarius, filme do diretor Kleber Mendonça Filho que, aos 66 anos, a devolve ao cinema brasileiro. Mas ela contesta esta “devolução”. De Nova York, na entrevista concedida por Skype durante duas horas, ela diz que nunca saiu daqui. E que é referência no imaginário brasileiro por concessão do público. Aquele que, quando está num ônibus ou numa barca, cruzando a Baía de Guanabara entre Rio e Niterói, a saúda como Soninha. A seguir, takes dessa conversa, frames desse filmes, retratos de uma vida.
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“Aquarius”
– Esse encontro com o Kleber é de dois artistas comprometidos com uma verdade, com a sociedade, com o mundo. Como vivo sozinha andando de ônibus, fico observando, sentindo o comportamento do mundo. Kleber consegue fazer isso de forma articulada e acadêmica. Ao ler o roteiro, as coisas foram se encaixando na minha vida desde os anos 1980 e nesse meu jeito esquisito de ser. O Kleber foi me dando um texto para as coisas que eu não sabia como dizer. Kleber organizou meu pensamento, meu sentimento, meu coração, em relação ao país que eu amo, que eu tenho muito cuidado, que é o Brasil.
Anarquista
– Na realidade, não sou anarquista porque não cumpro as regras, mas porque as desconheço. E assim que eu conheço, as acho todas horrorosas. Defino o que é bom para o ser humano. Meu princípio não é do anarquismo, pelo contrário. Organização é fundamental para uma sociedade funcionar de forma saudável. Para você ser libertária, tem de conhecer as regras. Mas, na verdade, esse é o mito Sonia Braga. Eu não sou essa pessoa. Eu sou naturalmente uma pessoa assim. Não estou lutando contra as regras. Não fui à escola, parei aos 14 anos. Só agora, fazendo Aquarius, falei: “ih, era importante mesmo ter ido”.
Volta
– Já voltei (risos)! Quem quiser, pode negar, mas isso é um fato! Eu fiz o filme do Kleber. O Kleber me resgatou. Se eu fosse importante (no Brasil), eu faria comerciais, você não acha? Eu nunca deixei o Brasil! O Brasil, em determinadas coisas, é muito esquizofrênico. Uma parte esquece que eu existo. Mas a outra insiste que eu sou essa pessoa que representa este cinema.
Homenagem
– A bem da verdade, Gramado já meu deu dois troféus: Eu Te Amo, do Arnaldo Jabor, e Memórias Póstumas, do André Klotzel. Aliás, foi André que me resgatou daquele buraco “cadê a Sonia?”. O que eu volto a dizer sobre isso é que, de alguma forma, o Brasil está pra frente, avançado em tecnologia, mas é tudo um pouco (fala com sotaque meio português) “estamos em 1800 e mandar-lhe-ei escrever um bilhete, pois não sei escrever, dizendo: prezada Sonia Braga, lhe mando este bilhete...” (gargalhadas). É uma demora.
Passaporte
– Neste momento, Gramado diz mais do que “Sonia você é nossa!”. Diz: “Sonia, você é nossa??” Gramado está dando outra pontuação à minha vida (gargalhadas). Vim pros Estados Unidos nos anos 1980. Foi quando começou essa minha trajetória de ser a representante do cinema brasileiro mesmo sem fazer cinema brasileiro. Quando cheguei aqui, ia fazer Eu Sei que Vou Te Amar, do Jabor. Aí eu disse não para todos os convites. Mas o Jabor resolveu fazer o filme com atores mais jovens. Fiz aquela cara de desempregada e fui estudar inglês numa escola, depois nas ruas. E fui ficando. Com O Beijo da Mulher Aranha só tinha eu para divulgar o filme aqui. Dei todas as entrevistas, fotografei para tudo até o Oscar d’O Beijo.
Fama
– A minha vida inteira tive o péssimo hábito de ser famosa. É feito criança que tem um certo problema. Todos em volta sofrem aquele problema, menos ela. É ótimo e péssimo. Nos Estados Unidos, fui pra Bloomsday e fui tratada como ser humano. Eu me surpreendi, pois sempre tinha sido tratada com “oi, querida e tal...”. O péssimo hábito de ser famosa era quase que um defeito meu que eu não sabia.
Novela e processo
– Fiz alguns programas para a Globo que foram ótimos. A emissora resolveu reprisar uma novela (Dancing Days), que foi a gota d’água pra mim. Eu não ganhava nada e estava no ar. Então eu processei a Globo e o Canal Viva. E perdi a causa. Perder isso e com todos os meus conflitos e problemas, imagina o peso disso. Só fiz dez por cento da novela do Manoel Carlos. Não entendo até hoje. Mas não sofro. Se não tem trabalho, saio, dou uma caminhada, encontro uma florzinha e para mim isso é arte. Tem muito artista não gosta de ser chamado de trabalhador.
Brasil
– Fomos a Cannes, fizemos um protesto no tapete vermelho. Todos e individualmente! E não foi para nós tomarmos consciência do que já sabíamos. Foi para o mundo ter consciência do que está acontecendo no Brasil, desse golpe no Brasil. Foi com muitas discordâncias e conflitos que o Brasil chegou às Diretas Já. E isso foi respeitado. Esse golpe, esse retrocesso, é uma das coisas mais perigosas que a América Latina está vivendo. Estão partindo ao meio a nação. Quando você está na beira do precipício alguém te empurra, você não cai com uma palavra na boca. Você só fica vendo pela frente o precipício. Qualquer palavra que eu diga agora não vai cobrir os meus sentimentos em relação ao que estamos vivendo.
Público
– O sucesso no Brasil no nível de Dona Flor e Seus Dois Maridos, Dancing’ Days e Gabriela só acontece porque as pessoas olham para você e sabem que você faz parte da verdade delas. Elas acreditam em você, no seu discurso, elas sabem que você é verdadeira, elas te elegem para que você seja essa voz. Ator nenhum é famoso, todo ator é plateia. Ele só é famoso quando lhe é dada a permissão. As pessoas querem ver em você o que elas que gostariam de ser. Isso não é entertainment.
– Gostaria que as pessoas fossem ver Aquarius para lembrar que eu sou a mesma pessoa em que um dia elas acreditaram. A mesma! Eu tenho a mesma verdade, os mesmos sonhos, o mesmo crédito. Eu sou essa pessoa que um dia elas elegeram e gostaram. Esse é o único canal que eu tenho para me reconectar com elas.
Lembranças
– Uma vez, quando eu estava no Brasil com um namorado, nós fomos à Amazônia. Conheci um barqueiro, que nos levou à casa de sua mãe numa praia de rio, com só uma casinha na areia branca. Aí, naquele lugar isolado, a mãe dele me levou à sua sala e me apontou a televisão, dizendo “te conheço daí”. Essa relação profunda com o Brasil que eu consegui é ímpar, me emociona até hoje.
Liberdade
– Em São Paulo, nos anos 1960, eu tinha 16, 17 anos, ia ver Bertolucci, Fellini, e ia para um bar, tomar chopinho e discutir esses filmes. Nessa idade eu estava discutindo Bergman e falava naturalmente o que eu achava. Fui criada com essa liberdade. Quando eu comecei a trabalhar nos anos 1970, ia trabalhar de chinelas de borracha. Não digo o nome para não dar o crédito e porque nunca me chamaram para fazer um comercial. Todo mundo brigava comigo e perguntava “Sonia, por que você usa sapato de pedreiro?”. Depois, passou um tempo, e perguntavam “Sonia, por que você não tem carro com motorista?”. Mas eu tenho, se chama táxi! Sempre fui motivo chacota. Recentemente, fui motivo de chacota por usar barca e ônibus no Rio.
Beleza
– Não acredito em cremes. Eles partem de uma fé à qual eu não pertenço. Quando vou a esses lugares que vendem cremes fico pensando no que é que o ser humano se transformou. A gente não deu certo. O ser humano não deu certo. Quer dizer: o ser humano deu certo, mas você não vai querer abrir essa página de conversa... O que me desagrada profundamente hoje é ter de pintar o cabelo. Quando terminei Aquarius, quis raspar a cabeça para deixar o cabelo crescer branco. Foi um problemão, minha manager nos Estados Unidos não quis. É preciso lembrar que você não tem um corpo no armário para trocar. Quando eu fiz o lifting com o Pitanguy, a minha pálpebra estava caindo. Demorou, mas assumi. Sendo mulher, a gente não pode sair correndo ou de bicicleta chacoalhando. E fica passando um monte de Fórmula 1 por você. Esse é um universo muito louco. As pessoas fazem coisas muita caras, se deformam.
Relacionamentos
– Como nunca fui casada, não lembro o que é isso. Como eu estou solteira há tampo tempo, também não sei o que é isso. Tem uma coisa linda que acontece com uma mulher de 66 anos hoje. Não sei que tipo de hormônio é esse, mas é ótimo. É uma liberdade muito grande, uma mistura de adolescência, pois você fica com uma energia muito grande. Você não foca mais na sensualidade. O tesão é diferente. Mas aí ficam... “ai, ela está sozinha”. Não, estou com um hormônio que é ótimo! É bem legal. O que estou vivendo é quase um projeto científico. Eu sou um projeto científico!
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