Embora mera coincidência, não deixa de ser curioso que a oficina que João Armando Nicotti vem ministrando em Caxias do Sul, dentro da programação do Órbita Literária, tenha como cenário um subsolo. Isso porque o professor, que leciona literatura em colégios e cursinhos há cerca de 30 anos, é um apaixonado pela literatura russa, especialmente por Fiódor M. Dostoiévski, o autor de Crime e Castigo – e de Memórias do Subsolo, que, para Nicotti, é o livro mais complexo do autor.
– Meu interesse inicial foi a curiosidade pela língua, pela cultura e pela literatura russa – conta Nicotti, que começou a estudar o idioma num curso de extensão oferecido pela UFRGS, em 1987.
Desde então, passou a estudar também a literatura e seus expoentes, publicando trabalhos sobre a obra de Aleksandr Púchkin, Liev Tolstói, Máximo Górki e Victor Pelevin, além de traduzir trabalhos de Tolstói, Anton Tchekhov, Máximo Górki e Mikhaíl Artsibáshchev. Também está preparando para o próximo ano o livro Dostoiévski e o Leitor no Subsolo, mesmo título da oficina cujo terceiro encontro ocorre nesta segunda-feira, das 18h30min às 19h50min, no subsolo da Do Arco da Velha Livraria e Café (Rua Dr. Montaury, 1.570), em Caxias.
Leia também:
4º CineSerra está com inscrições abertas, em Caxias do Sul
Fábio Panone Lopes leva o grafite de Caxias do Sul para a Europa
Garibaldi terá apresentação da série Concertos comunitários em setembro
Banda Matanza faz show em Caxias no próximo dia 26
Aos 30 anos, brasileiros estão insatisfeitos, aponta pesquisa
"Cultura não pode ser moeda de troca"
Mesmo quem não participou dos dois primeiros encontros da oficina pode conferir atividades desta e da próxima segunda-feira, às 18h30min. O custo é de R$ 25 por encontro. Nesta segunda serão debatidos os contos O Senhor Prokhartchin e O sonho de um homem ridículo, e no dia 29, será analisada a produção dos participantes, com orientação para a leitura posterior de O Adolescente. E no dia 29, depois da oficina, às 20h, o professor e seus oficinandos participam do bate-papo Órbita Literária (este, com entrada franca) falando sobre os assuntos abordados durante os encontros.
Nicotti conversou com o Pioneiro sobre autores russos, literatura, leitura e formação de leitores:
– A família ainda espera, muitas vezes, que a escola é que cultue a leitura em seu filho – critica, lembrando que o exemplo, dos pais principalmente, é o maior incentivo ao hábito de ler.
Confira:
Pioneiro: Qual a importância de Dostoiévski para o cenário literário mundial?
João Armando Nicotti: Partindo do pressuposto de que Dostoiévski é de interesse de diversas áreas de conhecimento, como a medicina, o direito, a psicologia, o jornalismo, a história, a sociologia, a letras, a filosofia etc., pode-se concluir que a obra dostoievskiana tem aquele "ir além", ou seja, o autor não restringe sua literatura na condição do indivíduo num determinado contexto social, mas, sim, na condição de existencialidade desse personagem e suas atribuições para consigo mesmo em nível de metafísica.
Se tivesse de indicar apenas uma obra do autor como leitura indispensável, qual seria, e por quê?
Indicaria o livro mais complexo do autor, Memórias do Subsolo, texto de 1864, porque, além de não dar trégua ao leitor, desenvolve a teoria de que o homem é livre e não um autômato, pois o homem não é "teclas de piano" e, mesmo se fosse comprovado que o homem fosse "teclas de piano", ele, o homem, reinventaria a destruição e criaria novos sofrimentos para si mesmo com o objetivo de também reinventar o prazer da ofensa, do sofrimento etc. A recusa de ser autômato é vista na formação do "homem do subsolo" e de sua resistência a participar de um mundo ordenado pela racionalidade. Ele grita por uma nova dimensão da ordem, a não ordem, pois as regras e as evidências sustentadas pela razão devem ser combatidas.
Numa entrevista anterior, em 2013, o senhor falou que havia poucas opções para quem quisesse se aprofundar nessa área. O cenário mudou?
Não muito no que se refere aqui ao Rio Grande do Sul. Claro que sempre há alguma melhora, se considerada uma ou outra palestra que surge sobre a literatura russa. O problema, entretanto, é que a não continuidade cria espaços viciosos e de apatia para a discussão desta que é uma das maiores literaturas do mundo. Para combater esta letargia, todo ano proponho, ao menos, três cursos sobre os russos e os soviéticos em Caxias do Sul e em Porto Alegre.
Até não muito tempo atrás, obras de autores como Dostoiévski, Tchékhov, Tolstói e outros chegavam aqui como tradução da tradução... O que se perdia nesse processo? Isso foi corrigido?
Sim, está sendo corrigido graças às traduções diretas do russo por editoras do centro do país, como a Editora 34, a Hedras, a extinta CosacNaify, entre outras. O problema da tradução da tradução não é o fato apenas de ser indireto do original, mas, ao meu ver, da tradução já feita e escolhida para ser traduzida. Há ótimas traduções que podem servir de texto principal para a nova tradução, mas, essencialmente, o tradutor precisa também utilizar-se do original em russo para cotejar quando necessário. Rubem Fonseca, por exemplo, traduziu Isaac Bábel não diretamente do russo, assim como em língua inglesa há ótimas traduções de Anton Tchékhov que poderiam ser seguidas, mas, é claro, direto do russo é a melhor escolha.
E entre os escritores russos contemporâneos, quem o senhor destacaria?
Leonid Tsípkin, Victor Pelevin, Andrei Bitov, Sasha Sokolov, Andrei Kurkov, Tatiana Tolstaya, Svetlana Aleksiévitch, Vladímir Sorokin, entre outros.
Confira as últimas notícias do Pioneiro
Nesses cerca de 30 anos lecionando literatura em colégios e cursinhos, o senhor percebeu alguma mudança significativa no interessa dos jovens pela leitura? De que forma?
Acho que o jovem sempre leu ao seu modo, desde os best-sellers até os clássicos. Atualmente, parece-me que há mais leitores, mas o problema que deve ser discutido é como estes leitores dialogam suas experiências literárias.
Aliás, num mundo em que a tecnologia estimula cada vez mais o imediatismo e em que se costuma fazer várias coisas ao mesmo tempo, como atrair para a leitura de um clássico de 400 ou 500 páginas, que exige foco e atenção?
O leitor nasce em sua própria casa e aperfeiçoa sua leitura com profissionais da área. Passa, para esse leitor, como algo secundário o número de páginas. Mas a família ainda espera, muitas vezes, que a escola é que cultue a leitura em seu filho, daí as coisas complicam, porque, às vezes, nem os pais, os tios, os avós conseguiram ler em sua vida útil de leitor 400 páginas. O problema, então, não está no imediatismo, na tecnologia, no tempo etc., apenas, está também na formação cultural do leitor através de suas gerações.
Outro fenômeno que se percebe nos últimos tempos é a proliferação de livros de celebridades, especialmente YouTubers. Esse tipo de obra ajuda ou atrapalha no interesse por literatura?
Esse tipo de literatura sempre existiu, sempre atrapalhou e sempre contribuiu para o leitor se tornar crítico e seletivo aos clássicos.
Por fim, há quem diga que, com as redes sociais, nunca se leu tanto, apenas é uma outra forma de leitura, mais fragmentada e extra-livros. Com isso, a literatura continuará mantendo seu papel?
Sim. Haverá por muito tempo bibliotecas, livros, papel e consciência de que livro é insubstituível. O problema também não parece ser este, mas aquele que Dostoiévski já prenunciava em um de seus livros (livro, e não rede social!): "Ideias mesmo andam escassas, porque hoje só há lugar para fenômenos". Engraçado, se não fosse trágico, pois isso foi escrito em 1873, em Bobók.