Da metade do Brasil para cima, falar “os meninos” é falar de infância. É reunir guris e gurias entorno de um tempo específico, foco de estudos da etnomusicóloga Lydia Hortélio, uma das convidadas do 6º Encontro de Educação Musical e 1º Seminário de Educação Musical, que se encerra neste fim de semana no Campus 8 da UCS.
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– Meu encantamento são os meninos, as experiências e gestos, as práticas culturais, o convívio entre eles sem a carga do adulto, da escola – diz a baiana de 83 anos, pique de umas três décadas a menos, curiosidade, vivacidade e inquietação de menina.
Obstinada pesquisadora dos brinquedos da infância – expressão que abraça músicas, gestos e emoções –, Lydia mapeou parte desse universo de sua cidade natal, Serrinha, no nordeste baiano. O material está em dois CDs acompanhados de livretos: Ó, Bela Alice e Céu, Terra, 51! Cada Vez Sai Um. São registros do olhar, da audição afetiva, do coração. Longe de tratados acadêmicos.
– A criança fica cerceada de seu movimento quando chega no mundo dos adultos. Muitas das pesquisas sobre criança, dos mestrados e doutorados, são coisas de adultos. A gente pensa com começo, meio e fim. A cultura da criança é movimento, nos meninos acontece tudo de uma vez só, é corpo que pensa – diz.
Corpo e cultura afinando uma trajetória: Lydia estudava piano na Europa quando decidiu mostrar cantigas e estudos a Paulo Freire, o educador brasileiro que estava exilado. O encontro gerou uma de suas missões: devolver seus estudos como forma de desafio ao povo brasileiro. Na volta, ainda inquieta, num dia qualquer, quase que por encantamento, Lydia ouviu uma flauta de pífano. Foi raptada pelo encanto da cultura popular. E decidiu cirandar.
– De meu encontro com Paulo Freire, ouvi ele falar de alfabetização cantada. A música é outra língua. Vivia na Europa com uma tristeza, um banzo, era uma saudade do Brasil que eu nem sabia que existia – relembra.
A zona rural virou seu campo de estudos. Lugar de simplicidades, do gosto pela beleza. Daí vem a inspiração e o material concreto para uma afirmação sobre pertencimento e autenticidade brasileira. Sobre singelezas e brejeirices.
– Importamos uma cultura do Hemisfério Norte achando que estamos civilizados, mas a índole do povo é cantar, brincar, dançar. Quando fizermos isso, o Brasil dará certo – acredita.
Para apostar no futuro, Lydia recompila o passado, as brincadeiras e as cantigas, os sons e as fabulações.
– Relembrar é brincar. E brincar é chão, origem, meta, é sentido da vida. A revolução que nos falta é de ouvir as crianças – afirma a baiana.
No entanto, o contexto da infância é atravessado por uma invenção chamada escola. Uma instituição regradora, normatizadora...
– A gente interdita a beleza na escola. Na escola, há o peso exacerbado da mente. Ele caminha para o Enem, que é um projeto menor. Ali não se faz poesia, esquecem que é preciso beleza.
A declaração clama por renovação de laços, afetividades.
– Hoje em dia, os meninos estão sendo arrancados dos colos das mães para ir para a escola. Como a gente deixou chegar a isso? – questiona e denuncia.
A cada palavra que escolhe para se explicar, é como se Lydia enunciasse pequenas alegorias sobre a vida.
– Como ter cidadania sem saber a sua língua? Fernando Pessoa disse que a língua é a pátria. E as palavras todas que estão nos brinquedos das crianças, na melódica das falas? – questiona, argumenta e se inquieta. E então constata:
– Há uma crise e a travessia é desconcertante. Mas acredito que, quanto pior ficar, melhor. Porque aí quebra tudo.
A reconstrução necessária vem da capacidade de perceber falas e escritas, peculiaridades próprias daqui. Verbalizações e manifestações da cultura popular são um dos vetores.
– No Nordeste, passam uma noite inteira cantando sem se repetir e a gente chama eles de analfabetos?! – exclama.
O que quer, o que pode esta língua?, perguntaria Caetano.
– As primeiras palavras, a língua mãe, a língua mãe musical. Todas as culturas têm suas canções. O fenômeno do brinquedo tem a dimensão do movimento regido pela palavra, o tom, a música com o outro. Se não há estas dimensões, nada acontece. Sem estes embates, perdemos possibilidades – argumenta a estudiosa.
Uma das convicções que brota sem pestanejar na fala da etnomusicóloga é sobre o caminho a seguir, as mudanças a se fazer.
– Há um repertório imenso de cantigas de trabalho de homens, de cantigas de trabalho de mulheres, de brinquedos de criança. Nas populações que vivem com a natureza, a música acompanha todos os gestos da vida, da infância à incelênça.
Esse universo é matriz, motriz de possíveis novas reverberações para a cultura brasileira.
– Nas grotas, nos fundões, há compilações de matrizes diferentes, indígenas, africanas, europeias. Cada um tem seu peso diferente. Há uma riqueza musical que nos escapa. Estamos diante de um universo a ser inaugurado, que é o da mestiçagem brasileira consciente. Só acredito naquilo que a gente ama, que dá alegria – fala Lydia, renovando o fôlego e a fé nas musicalidade tupiniquim.
As mudanças, os repertórios e as possibilidades confluem e se afinam no olhar e nos argumentos que a experiência compila como sabedoria para seguir na jornada, nos desafios. E, de novo, ela reafirma suas crenças:
– É na criança, que é o ser humano ainda novo, que tenho esperança. Os meninos têm todas as promessas. É cantando, dançando e brincando que vamos construir alguma coisa nesse país. É essa interligação que temos que construir.
As indagações e as indignações diante da conjuntura sócio-política também estão na pauta.
– Temer não deve cantar – deixa escapar Lydia.
Mas a delicadeza ganha um tom maior. E, igualmente, a vontade de recuperar essências, dar sentidos às cirandas potentes que a catalogação dos tantos brinquedos que as tantas infâncias – “que é atemporal”, frisa – movem cada gesto dessa obra. É quando ela sempre relembra o ensinamento de seus mestre português, o poeta Agostinho da Silva:
– Ele dizia que os meninos têm a alma em frente. É que a espontaneidade e a inteireza vêm antes, a alma chega primeiro.