“Não há Páscoa sem cheia nem Cinzas sem nova”, revelou meu avô materno quando eu, menino, apontei a suposta coincidência do pleno luar num Sábado de Aleluia. Eu nem sonhava estudar astrologia quando tive, ali, uma primeira noção da conexão entre mitos, ritos e ciclos cósmicos. Achei aquilo maravilhoso. Era como se a sacralidade da Semana Santa fosse confirmada pelo céu com o espetáculo lunar.
Só muito depois fui saber da velha tradição de origem judaica de comemorar a Páscoa, marco de saída do cativeiro do Egito em direção à Terra Prometida, sempre na primeira cheia após o equinócio de Áries. E soube também que foi numa Páscoa que morreu o judeu Joshua Bar Josef, mais conhecido por Jesus, encarnando o cordeiro sacrificado na festividade e fundando o imaginário religioso que ainda sustenta boa parte do mundo.
A poesia dessas imagens, as da minha memória e as da tradição cristã, já sugerem que somente algum poeta poderia tecer a melhor narrativa possível dos feitos sobre Jesus. Por isso, corri a reler a pequena biografia Jesus a.C., escrita por Paulo Leminski em 1984. Que livro! Já o tinha lido quando foi publicado e, de novo, quando relançado com mais três outras biografias do autor – Cruz e Sousa, Bashô e Tróstki – no volume Vida, de 2013.
Desde o título – Jesus a.C. –, Leminski indica seu percurso rumo à dimensão humana dessa figura, “em torno de quem tantas lendas se acumularam, floresta de mitos que impede de ver a árvore”. É um livrinho precioso sobre Jesus no contexto religioso, econômico e político de sua época, mas, antes de tudo, é uma biografia lírica de um superpoeta, que falava por parábolas. Mostra que Jesus ainda é um enigma.
O olho de poeta de Leminski nos conduz a reflexões surpreendentes sobre a história mais explorada da cristandade. Como a faceta revolucionária de Jesus. Sem pegar em armas, sua doutrina, que seduziu primeiro os pobres e os escravos, abalou todo o Império Romano até virar religião oficial. Sua pregação de um vindouro Reino de Deus soava claramente subversiva aos olhos dos reinos vigentes.
Sua exaltação da pobreza como virtude contra a ganância dos poderosos; sua compaixão que ensinava a amar até os inimigos: para o autor, o programa de vida proposto por Jesus é rigorosamente impossível. Nenhuma igreja dita cristã o realizou. Diz Leminski: “Religião saída de Jesus não poderia ter produzido Cruzadas, inquisição, pogrons e as guerras de religião entre católicos e protestantes”. E sintetiza: “O programa de Jesus é uma utopia”.
Curioso, para Leminski, é a doutrina de Jesus não constar na farta bibliografia sobre os socialismos utópicos. Mais curioso, observo eu, é o fato de muitos cristãos xingarem de “comunista” aquele que tenta seguir ao máximo a mensagem de Jesus. O padre Júlio Lancellotti, por exemplo, por seu trabalho junto às populações de rua, é comumente agredido por convictos cidadãos de bem. A estes, deve faltar um coração.
Ah, o coração de Jesus! Vi no programa do Pedro Bial o padre Júlio contar de um menino que o perguntou por que, na imagem sacra, o coração de Jesus aparece para fora. O padre explicou que era por Jesus tanto amar. E o menino: e isso dói? Sim, diz agora o padre, isso dói, pois amar como Jesus amou é entregar-se sem saber para onde se vai. É a pura compaixão.
Neste luar de Páscoa, penso que expor o coração soa mesmo a utopia, já que parece mais fácil seguir uma Marcha para Jesus levando a réplica de um gigantesco revólver. Mas o que seria de nós sem utopias?