O homem que esfregou na nossa cara que o Brasil é a pátria de chuteiras, que expôs à luz o choque dos costumes quase sempre defendidos por candura, mas conduzidos entre quatro paredes por um sem fim de canalhices e que se defendia de suas provocações com a expressão “óbvio ululante”. Este homem, se estivesse vivo, teria completado 110 anos na última terça-feira (23).
Nelson Rodrigues é — e continuará a ser, pelo menos até que queimem toda a sua obra e seja incinerada toda lembrança que o resguarda na memória do inconsciente coletivo – a pedra no sapato, a unha encravada, o cisco no olho, o zumbido no ouvido, a sarna em colchão velho e mais de um sem fim de incômodos necessários que a vida nos prega, pra nos lembrar da nossa condição de seres humanos. Aliás, sobre a dita humanidade Nelson escreveu: “Não há nada que fazer pelo ser humano: o homem já fracassou”.
A cada nova edição da Copa do Mundo, que a cada ano fica ainda mais sem graça, lembro que não teremos as crônicas do Nelson pra ler. É que o olhar dele transpassava o jogo em si e amplificava a própria vida, como explicou em uma de suas crônicas: “O futebol vive dos seus instantes dramáticos e um jogo só adquire grandeza quando oferece uma teatralidade autêntica”. Nessa era do futebol decidido na frieza do congelamento de imagens, em que o autor do gol espera sentado se pode ou não comemorar, a dramaticidade rodriguiana foi substituída pela comédia pastelão.
Da mesma forma que com o futebol, sinto que nessa época de eleições perdemos a oportunidade de ler as observações irônicas do Nelson. É dele a frase, por exemplo: “Nada mais cretino e mais cretinizante do que a paixão política. É a única paixão sem grandeza, a única que é capaz de imbecilizar o homem”. Com escrita afiada, “bateu” em líderes da esquerda e da direita, valendo-se da polifonia pra driblar leitores pernas de pau, que dão carrinho e cotovelada até na sombra.
Se por um lado, Nelson era capaz de confessar: “Sou como você sabe, um reacionário, de alto a baixo, da cabeça aos sapatos. Reacionário, porque não formo entre os que querem assassinar todas as liberdades”. Em outro momento, quando analisava sua obra como dramaturgo, imortalizada em peças como O beijo no asfalto, Vestido de noiva e O casamento, só pra citar algumas, ele mesmo reconhecia: “Meu teatro é desagradável!”. E desagradável porque, como autor, ele escancarava a porta do quarto, revelando seres humanos desnudos, desprovidos de máscaras de bons moços.
Em tempos de embates virtuais, de gente que perde a piada, o amigo, o marido e o amante por causa de paixões políticas, não custa recordar de mais uma lição do professor Nelson Rodrigues: “A maioria das pessoas imagina que o importante, no diálogo, é a palavra. Engano, e repito: — o importante é a pausa. É na pausa que duas pessoas se entendem e entram em comunhão”.