Gostaria de, num passe de mágica, ser transportado para daqui a duas ou três décadas. Só para olhar em retrospecto o que aconteceu depois de ter sido encontrada a vacina para combater o coronavírus. Sabe por que? Hoje, a especulação filosófica recorrente é essa: sairemos melhores desse período trevoso e angustiante ou, findo o medo, retornaremos às práticas anteriores? Será que nosso pensamento se vergará diante da fragilidade da situação ou simplesmente seguiremos como anteriormente, com hábitos e comportamentos francamente autodestrutivos? Há a turma dos que, imbuídos de genuína fé no ser humano, apostam numa recuperação de valores éticos e ações admiráveis. Creem que, através de um processo de ampliação da consciência, assumirão suas responsabilidades e optarão por olhar para si e para os que os cercam com benevolência e generosidade. Outros, recusando o otimismo, pensam que formulamos tal ideário movidos por um sentimento que só se sustenta no provisório. Preferem chamar de uma leitura lúcida dos fatos. À luz do bom senso, devemos nos filiar a uma dessas correntes? Particularmente, prefiro mesclar opiniões a formular uma que seja permeada só por uma fé cega ou pela lógica que desacredita totalmente da capacidade de regeneração da nossa raça.
Historicamente, catástrofes naturais, pandemias e guerras, raramente provocaram grandes mudanças na rota de destruição a que costumamos nos entregar. Aqui e ali assinaram-se tratados de paz e a solidariedade se manifestou em escala maior. Mas a semeadura foi econômica. O que evidencia que dentro de nós habitam anjos e demônios e que depende de cada um domesticar ou abrigar amorosamente em si um deles. Como se convencer de que sairemos dessa plenamente purificados? Prontos a não poluir tanto os rios, a sermos menos gananciosos e a olhar o próximo com benevolência e compaixão. Porém, quero colocar algumas fichas no escaninho em que está escrito: algo foi aprendido. Ao fim e ao cabo, toda essa tristeza e impotência precisa reverberar positivamente. Nem que seja sobre uma pequena parcela de seres que, futuramente, nos lembrarão que corremos o risco de ser derrotados por inimigos antes inimagináveis.
Confesso certo medo de que haja um recrudescimento no número de criaturas inclinadas ao conservadorismo. Afinal, por longo tempo, ao que indica, os contatos físicos virão mesclados à possibilidade de contaminação. O cinema já sinalizou: as próximas produções não mostrarão beijos tórridos e nem cenas de sexo abrasador. Será que os oportunistas espirituais irão se aproveitar disso em seus púlpitos? É esperar para ver. Por enquanto, tudo que se venha a dizer será meramente especulativo. Qualquer previsão poderá se tornar falha. Humildade, portanto. Estamos reféns de uma realidade que supera a mais respeitada ficção científica.