Até os que a consideravam perda de tempo, estão mudando seus conceitos. Perceberam, ilhados em suas casas, que sem ela os dias seriam longos, longuíssimos. E o tédio, seu companheiro mais constante. Ao folhear as páginas de um livro, escolher filmes, observar quadros e apreciar música, descobriram que seria possível continuar viajando, só que agora em outra direção: para dentro de si. E o que se anunciava o inferno transformou-se, subitamente, em rica possibilidade de se relacionar melhor consigo. A arte, tão execrada em esferas do atual poder público, ganha contornos de salvação no âmbito doméstico. Para alguns, talvez, seja apenas o alívio imediato, evitando sucumbir ao desespero. Porém, creio que estará definitivamente incorporada às necessidades essenciais de grande número de pessoas. Como em tudo, sempre se pode extrair algo de bom quando o horror faz a sua visitação. Para não nos submetermos à peste emocional, sugere-se ingerir doses maciças desse remédio, sem nenhuma contraindicação. As atividades profissionais costumam compartimentar, criando uma espécie de linguagem para cada função exercida. O contrário se dá quando mergulhamos no universo da reflexão e do prazer estético: temos a impressão de que todos falam o mesmo idioma.
Historicamente, as épocas que sucederam a grandes catástrofes naturais ou provocadas pelo ser humano revelaram-se extremamente criativas. Saídos do caos, buscamos respirar novamente longe das pressões e do sentimento de incerteza. E é nesse momento que impulsos fecundos encontram seu lugar. Estou tentando me adaptar às milhares de ofertas online do que antes só parecia ter sentido se fosse presencial. Ainda é minha maneira preferida de consumir o que nutre a alma, mas devo considerar essa rica possibilidade de garimpar excelente material em aplicativos e sites que servem de desaguadouro para artistas e pensadores. A capacidade de adaptação revela-se fundamental, sob o risco de persistirmos em habitar um mundo que deixou de existir: o puramente analógico. Já que estamos sendo impedidos de realizar tantas coisas que nos davam prazer, acessemos a imaginação para não interromper o roteiro das pequenas alegrias cotidianas. As mudanças que acontecem depois de começarmos a praticar essa ginástica para os neurônios são incontáveis. Faça o seguinte exercício mental: liste seus amigos e veja a que categoria pertencem os que você mais gosta de conviver: a dos pragmáticos e funcionais ou dos que se abastecem de literatura, poesia, cinema, etc. A probabilidade de marcar o “x” na segunda opção é bem maior.
Viver é deixar-se esculpir pelo conhecimento e também pelas circunstâncias. O pensamento não precisa ser submetido às regras da quarentena. Coloque-o para trabalhar mais do que nunca.