Dificilmente você lerá em algum texto que escrevi ou em conversas com amigos: “Eu sempre pensei assim.” Orgulho-me de ser fiel a princípios que privilegiam o respeito, a delicadeza nos contatos, o exercício da escuta atenta. Mais: de não impor minha opinião, acreditando que o mundo seria melhor se todos seguissem a mesma cartilha. A maravilha está na diversidade, no escrutínio do que está longe de habitar meu real ou o meu imaginário. Enfim, detalhes nem tão pequenos que nos ajudam a tornar a vida uma aventura mais instigante.
O fato é que, cada vez mais, esbarro em pessoas ou em matérias online que privilegiam o que chamam de coerência - mas que pode ser entendida também como um engessamento de ideias. A palavra fidelidade é invocada quando o assunto vem à tona. Perfeito, é preciso desconsiderá-la numa época em que tudo é volátil e a palavra permanência raramente ultrapassa o pôr do sol. Mas eu acho mais interessante poder substituí-la por outras, que permitem certas modulações, dando ao menos um pouco de liberdade ao incontrolável fluxo cerebral. O que iria me obrigar a manter uma coesão entre o que eu postulava quando era adolescente e agora, décadas depois e montanhas de experiências acumuladas? Desconfio dos que nos cobram viver em linha reta, sem um pequeno desvio qualquer. Penso que por trás desse discurso se esconde uma vocação de controle da vontade do outro.
Da mesma maneira que, quando nos preparamos para uma prova, fazemos uma revisão do conteúdo visto, parece necessário executar tarefa semelhante em relação a conceitos que norteiam a nossa existência. Se tudo o que há do lado de fora muda constantemente, por que seria diferente com o lado de dentro? Nem precisa ser uma guinada semelhante a um tsunami, mas um movimento sutil que sinaliza a nossa disposição para acolher o novo e manter-se aberto ao que se contrapõe ao nosso sistema pessoal de crenças. Vale para religião, política, senso estético, parceiros afetivos e amigos. Para tudo, enfim. É como desarrumar as prateleiras do seu armário: o objetivo é ver o que você ainda vai usar e o que pode ser descartado. Coerência é isso: jogar luz sobre posicionamentos que precisam ser reavaliados permanentemente. Gosto de imaginar que cada um de nós é uma espécie de pilar que sustenta um micro- universo. A base precisa estar lá, mas é possível fazer reformas no seu topo.
Para que isso seja uma prática, é bom sair do próprio casulo de ideias. Investigar, rechaçar, acolher. Duvidar, constantemente. Antes de levantar o dedo em riste, ao encontrar alguém que professa uma verdade diversa da sua, lembre-se que faz parte da boa educação não querer habitar um mundo monocromático. Deve ser bem chato revelar-se sempre o mesmo. Avance: você pode atravessar todas as portas.