Minha amiga morreu numa ensolarada tarde de inverno. Como no poema que Ferreira Gullar escreveu quando o corpo de Clarice Lispector estava sendo enterrado, também me entristeceu a indiferença dos outros passantes, das flores, dos animais, das nuvens. O dia seguiu como se nada tivesse acontecido. No entanto, nós que a amávamos, sentimos o coração se comprimir, as cores se apagarem, o desejo de alegria desaparecer. A constatação da imobilidade definitiva é um choque, o reconhecimento óbvio e esquecido de que este é o nosso inexorável destino. Choramos também por nós. Algo se transforma em pedra e onde antes havia poesia e ternura agora há apenas a pele translúcida e gelada. A vida continua enquanto há memória, enquanto transformamos a saudade num itinerário que visita os afetos que nutriram as relações. Os estoicos nos ensinaram que não devemos sofrer por aquilo que não pode ser controlado. Porém, como deixar que a terra transforme em outros elementos um rosto querido? Tudo o mais parece contornável, pois temos o amparo dos que nos ajudam a suportar a solidão.
Opinião
Gilmar Marcílio: As roupas dos mortos
Mas, digam-me, haverá desconsolo maior do que abrir um armário e tocar nas roupas que já não pertencem a mais ninguém?
Gilmar Marcílio
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