Ele veio de Lagoa Vermelha. Foi o que me contou. E afeiçoou-se pela Praça dos Tiroleses, aquele espaço urbano abandonado pelo poder público ao lado da Casa de Pedra. Ali, de fato, é um espaço aberto, arborizado, agradável, apesar do maltrato evidente. E foi ficando já havia alguns anos. Dormia por ali, sob marquises, nas reentrâncias dos prédios ou alguma escada escondida, ou ao relento mesmo. Todo dia, 8 da manhã, batia um dedo de prosa com ele quando levava as duas pugs para o passeio matinal. Ele nos recebia com um sorriso fácil e descobriu logo que Shakira era mais faceira do que Kika, esta mais reservada pela idade e por personalidade. E fazia festa para elas. Shakira, especialmente, balançava o rabo e retribuía com generosas lambidas. Havia um outro morador de rua, seu conhecido e colega na noite, com quem ele conversava e fazia questão de descrever quem era e como era cada uma das pugs, para não se atrapalhar com a semelhança física delas.
– Coisa mais querida, os bichinhos. Melhor do que muita gente – traduzia.
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Haveria de estar certo. Então me contava, enquanto as cachorras especulavam por ali, que muito morador de rua fazia refeição debaixo das árvores e que os restos ficavam atirados, mas que ele se dedicava a limpar, a recolher garrafas e outros recipientes soltos.
Assim que a manhã engrenava, tornava-se flanelinha. Mas não pedia dinheiro, fazia questão de me dizer. E assim era, ele não abordava ninguém. Se o motorista quisesse, deixava algum trocado. Relatou-me de uma vez em que um motociclista, em dia inspirado, saiu da agência da Caixa e entregou-lhe 20 reais, dizendo ainda que voltaria para trazer-lhe roupas já sem uso, o que, de fato, fez. Em dias especialmente produtivos, me contava ele, chegara a abiscoitar 70 reais. Nessas ocasiões, dava-se ao direito a um pequeno luxo: pernoitava em um hotel popular no centro da cidade, com diária a 39 reais, onde podia se espichar em um colchão, tomar banho quente e fazer a barba na frente do espelho. Nessas horas, é inevitável refletir sobre nossas reclamações diárias diante da vida.
Quinta-feira da semana passada, de madrugada, ele se foi, na mesma Praça dos Tiroleses que tão bem conhecia. Levou pancadas na cabeça e amanheceu morto, encostado na parede do prédio da Caixa, onde costumava dormir. A vizinhança, que o queria bem, não se conformou até agora, e está triste.
O morador de rua, chamado Cobra, soube fazer a diferença. E faz muita falta na região da Praça dos Tiroleses, que está mais triste, mais vazia, ainda mais descuidada.
Opinião
Ciro Fabres: o bairro está mais triste
Nessas ocasiões, dava-se ao direito a um pequeno luxo: pernoitava em um hotel popular, com diária a 39 reais
Ciro Fabres
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