"Nesse lugar, estou esquecida pelos amigos, lembrada pelos inimigos, rodiada (sic) pelos falsos, pisoteada pelo diabo, mas jamais abandonada por Deus." A inscrição acima é assinada por uma mulher que se chama Kelly. Ela ficou eternizada em uma foto do fotógrafo Marcelo Casagrande na reportagem sobre as cracolândias caxienses, publicada neste jornal. Foi escrita na madeira de uma casa ocupada para consumo de drogas no bairro Euzébio Beltrão de Queiroz. Logo abaixo, outro rabisco introduz uma passagem bíblica conhecida: "Nem que eu ande pelo vale da sombra da morte." Sugere que o casebre ali, circunstancialmente, materializa ao nosso lado este endereço bíblico que sempre fustigou nossa imaginação. Como seria o vale da sombra da morte? Eis uma resposta real.
A foto corre o risco de se perder em meio à avalanche de informações que nos chegam diariamente. Quem lê tanta notícia, provocava Caetano, 50 anos atrás. O que dizer hoje, quando somos bombardeados, e isso não é bom, pois carrega boa dose de probabilidade de fazer passar despercebidos enquadramentos, ângulos e flagrantes da realidade. Como o rabisco de Kelly.
As drogas são um flagelo. Na nossa Caxias, onde a Brigada informa haver 12 pontos de consumo de crack, ou 12 cracolândias, a mesma reportagem registra que "o único órgão (público) que se aproxima do local (a casa no Beltrão de Queiroz) é a Brigada Militar". É uma constatação reveladora. Resgatar usuários deste "vale da sombra da morte", entendido como um lugar onde a vida corre perigo e a dignidade escorre pelo ralo, é tarefa dificílima, a exigir política pública para definir uma estratégia de ação.
Não cabe o "cada um por si". Sabe-se que os órgãos de assistência social e da saúde desenvolvem ações, mas se percebe que a Secretaria de Urbanismo não identifica o que fazer com as propriedades que servem de cenário ao tráfico e consumo de drogas. Existem as abordagens, um consultório de rua, os centros de atendimento psicossociais, a atuação policial, mas todas essas ações precisam ser discutidas e planificadas conjuntamente. Isso acompanhado da decisão política de haver mais investimento na dignidade das pessoas. Além dessas iniciativas, que cabem à esfera pública, é preciso relembrar que o consumo realimenta a roda do tráfico. E mais: Kelly introduz uma variável que nos diz respeito. A autora do recado sente-se "esquecida pelos amigos". Essa é uma roda da engrenagem que muitas vezes descuidamos, falseando o apoio a quem pode estar diante das inseguranças e incertezas típicas das pessoas e das humanidades.
Até que ponto temos uma palavra e apoio amigo para quem está precisando? E sabemos identificar esta necessidade?