Enquanto escrevo esta crônica ouço a música do vizinho, que atravessa a rua e me encontra. É bossa nova e embala o fim da tarde, quiçá, o fim de ano. Outra vez o ritmo de vida se acelera. Parece que tudo precisa ser feito antes do fim do ano. São as compras de Natal. Uma urgência de emergência. Uma correria. Como se não houvesse pandemia, como se a economia estivesse em alta e não vivêssemos tempos tão violentos. Mas há a música. Há uma certa leveza no ar. Há uma sensação de virada de calendário, de outros, talvez novos, tempos. O calor intensifica a sensação. É praticamente verão. Temporada de férias, de praia e de demissões. Sim, nem tudo se resume a presentes, noite da ceia, areia e mar. Então um balde de água fria, o que nestes 31 graus de hoje cairia bem, na vida real, é dureza.
Impossível não odiar esses diálogos negacionistas que banalizam a morte. Em tempos tão estranhos quanto esse, o azul do céu cai como ácido em nossos olhos. Arde e desliza. Um céu ácido. Tudo se retrai no corpo de quem sente. Pensar é sentir e estar doente dos olhos, já dizia Fernando Pessoa. Inclusive o amor. Miro as flores do jardim, dão um jeito de florir em meio a precariedade da vida. Que assombro. De onde o ser humano tira forças? Ou alucinamos que conseguiremos atravessar isso tudo e chegar a um outro espaço, menos caótico e mais humano?
Há tão perto tanta miséria. A miséria é uma grande avenida em que o vazio garante sua permanência. Dias atrás uma mãe, grávida e com uma criança no colo pedia comida, no sinal. Pedia comida. Pedia papel higiênico. Pa-pel-hi-gi-ê-ni-co. Acima de nós há o sol, o Estado e Brasília. Há também a ignorância e a falta de compaixão. A criança chorava um grito que se perdia entre as buzinas dos carros, o trânsito frenético e o movimento das pessoas, que passavam sem vê-la.
Salva-me a lembrança de Ferreira Gullar, pois que dar-se conta desse sol sem tempo, é tornar-se uma espécie de arame estendido no ar de um pátio que ninguém visita. Não há rua em que homens e mulheres não arquejam e carregam na boca o gosto da poeira, poluição e descaso. Percebo, nem a poesia salva.
Mas a claridade dos que negam esconde esse chão de evidências. Julgam, criticam, preferem não ver e vivem mecanicamente. Alguns ainda dizem crer em Deus. Uma cisão profunda e talvez permanente. Mas o futuro tem a cor do agora. Não chegaremos a salvo num outro mundo possível em meio a este calor, a esta sede e a falta de papel higiênico.
Cuidemos de nossas obsoletas ajudas, as gorjetas miúdas e o não envolvimento. É quase Natal, nos emocionamos com a chegada do menino Jesus e queremos presentear os que amamos. Nossa conturbada prosperidade, a desfaçatez da concórdia. Enquanto isso, Vinícius de Moraes canta, é melhor ser alegre que ser triste.