Ely José de Mattos, economista e professor da Escola de Negócios da PUCRS
Recentemente, no Fórum Econômico Mundial, a ministra Marina Silva foi criticada por ter dito que o Brasil tem 120 milhões de pessoas passando fome. A primeira leitura é de que a ministra se equivocou. Mas, ao levar em consideração a complexidade do tema, ela também pode estar certa.
É possível apontar que ela se equivocou se olharmos exclusivamente para o relatório divulgado pela rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) no ano passado. Lá é apontado que o contingente de pessoas ditas “passando fome” é de 33,1 milhões. São pessoas que sofrem de “insegurança alimentar grave”, que no Brasil vem sendo referenciada como “fome” para fins de monitoramento. Nesta faixa ocorre redução quantitativa severa de alimentos no domicílio.
Mas essa associação entre o conceito de fome e a insegurança alimentar grave não é consensual. O próprio Usda (United States Department of Agriculture), de onde o Brasil tirou inspiração para criar sua escala de medida de insegurança alimentar, já deixou de associar “fome” com qualquer ponto da escala. Segundo eles, insegurança alimentar é uma medida domiciliar, que tem a ver com dinâmicas de acesso ao alimento; fome, no entanto, é uma condição do indivíduo, com elementos psicológicos a serem considerados.
Precisamos de inquéritos mais profundos e dedicados ao tema, que tratem das experiências psicológicas das pessoas
Assim, a compreensão de fome pode estar associada a qualquer ponto na escala de insegurança alimentar. A FAO e o Banco Mundial, por exemplo, costumam tratar fome como subnutrição – que não obrigatoriamente se origina de restrição absoluta de alimentos, mas também da ingestão insuficiente ou de má qualidade.
Em suma, para medir fome necessitamos de uma definição consensual do seu significado. E as escalas de insegurança alimentar domiciliar não parecerem pacificar este conceito. Precisamos de inquéritos mais profundos e dedicados ao tema, que tratem das experiências psicológicas das pessoas nos diferentes contextos em que vivem.
A ministra Marina mencionou que 120 milhões de pessoas estariam passando fome no Brasil. De acordo com a Penssan, este número é o de pessoas que enfrentam algum nível de insegurança alimentar. Com base no tipo de dado que temos, não acho que possamos descartar, categoricamente, que estas pessoas experienciaram “fome”.
De todo modo, independente do conceito, parece-me claro: mais da metade população brasileira não está comendo de modo ideal. Para mim, isso já é um problema grave o suficiente e torna a polêmica algo vazia.