Por Igor Oliveira, consultor empresarial
Houve muito debate recentemente sobre a possibilidade de organizações privadas comprarem vacinas contra a covid-19, notadamente empresas que pretendem aplicá-las em seus funcionários. No contexto de uma pandemia global que tem causado muitos danos ao Brasil, essa decisão pouco tem a ver com outras situações nas quais vacinas foram liberadas ou não para o setor privado. De um ponto de vista ético, não há dúvida que priorizar grupos de risco é preferível, seja por razões deontológicas (o dever de proteger quem precisa ser protegido) ou consequencialistas (a meta de reduzir sobrecarga do sistema de saúde e, assim, salvar mais vidas).
A discussão passa a ser, então, até que ponto permitir a vacinação privada comprometeria a ação do Estado em garantir a vacinação dos mais vulneráveis. Uma maneira simples de formular essa questão é como um problema de elasticidade-preço da oferta. Dado que a disponibilidade de vacinas no mundo é insuficiente e que atores internacionais tendem a prover menos vacinas a países com maior vacinação, resta pouca dúvida de que a cada 10 vacinas privadas perderíamos a oportunidade de aplicar algumas no público.
O diabo é saber quantas.
No mundo ideal, o governo deveria estimar essa elasticidade e obrigar os compradores privados a fornecer vacinas ao SUS em uma proporção que cobrisse com folga o prejuízo causado ao Estado. Essa tarefa é ainda mais difícil quando levamos em conta duas outras variáveis: o risco de o país ser banido de acordos internacionais de fornecimento caso autorize compras privadas e o sentimento de injustiça social gerado pela sinalização de que o dinheiro estaria determinando quem é vacinado.
Outra limitante nessa situação é nossa pobre capacidade de pesquisa, desenvolvimento e produção de insumos-chave da vacina. Nessas horas fica evidente a necessidade de nações do tamanho do Brasil terem um investimento substancial e consistente em P&D, o que diminuiria a nossa dependência e aumentaria nosso poder de barganha. Financiamento público à ciência pode parecer algo acessório, mas é um imperativo. Dado que somos uma das maiores nações do mundo, não temos o privilégio de nos vendermos a uma potência global em troca de um lote enorme de vacinas. Se fizermos isso, sofremos sanções mais do que proporcionais de outros lados.
Provavelmente a vacinação privada só será política e socialmente viável após a vacinação de todos os grupos de risco. E ainda assim exigirá do governo uma negociação duríssima com múltiplos atores: compradores privados, governos locais, burocratas da saúde, fornecedores de vacina, governos estrangeiros, organizações internacionais. O problema é que, como já mencionei aqui na coluna, o governo brasileiro tem pouco incentivo para negociar em nome do povo. Governos que negociam bem normalmente são controlados por instituições democráticas sólidas e alvos de grande escrutínio cidadão em suas ações. No Brasil não temos nenhuma dessas condições. É o mesmo fenômeno que faz com que acabemos com receitas abaixo do ideal a cada vez que vendemos uma estatal.