Por Marcelo Rech, jornalista e ex-presidente do Fórum Mundial de Editores
A queda-de-braço a que se assistiu na Austrália, com Facebook e outras plataformas de um lado e governo e grande parte da sociedade civil de outro, trouxe à tona uma reflexão mundial que já não podia ser mais adiada: afinal, para que serve uma empresa que vive de conteúdo além de faturar US$ 85,6 bilhões em 2020? Com pouco mais de década e meia de vida, o Facebook já parece uma organização empresarial precocemente enrugada pela incapacidade de entender que o novo mundo ESG (Environmental, Social and Governance) exige muito mais das empresas – sobretudo as de impacto global – do que crescer a qualquer custo dois dígitos por ano.
Desde sua fundação, o modelo de negócios do Facebook é similar ao de uma empresa de mídia. Na prática, ele arrecada sua montanha de dólares com a venda de anúncios a pessoas que veem seus conteúdos. Jornais e revistas adotavam modelo semelhante há mais de três séculos. O Facebook, porém, levou esse modelo a um extremo. Ele põe em seus cofres bilhões de dólares em publicidade convencendo pessoas a fornecer seus dados e a expor seus hábitos, sem pagar um centavo pelo conteúdo recebido – e ainda espera que os fornecedores de sua única matéria-prima, sejam eles amadores ou profissionais, demonstrem gratidão pelo fato de trabalharem de graça.
Na aparência, a disputa em andamento na Austrália – atentamente acompanhada no resto do mundo – se apresenta como uma controvérsia financeira. Mas é preciso olhar abaixo da linha de superfície. Ali veremos que, na essência, estamos decidindo se nós e as gerações futuras viveremos ou não em democracias nas quais as naturais e saudáveis divergências sejam tratadas com respeito e busca do senso comum e da vida em harmonia.
E como seria um mundo sem jornalismo que apurasse as notícias, filtrasse os exageros e decantasse versões para delas extrair a verdade?
Desde os primórdios de sua contenda com as plataformas de tecnologia, o governo australiano identificou que há muito mais em jogo do que a devida remuneração dos direitos autorais dos produtores profissionais de informação. A Austrália aponta caminhos para a manutenção do jornalismo independente e para a extensão aos gigantes digitais das regulações e obrigações que envolvem a todos na produção e distribuição de conteúdo.
Em última análise, o que se está dizendo na Austrália é que os gigantes digitais, que expelem como efeito colateral de seu negócio a poluição social da desinformação e do discurso de ódio, precisam recompensar aqueles que trabalham arduamente na limpeza desse ecossistema. Por ética social, deveriam fazê-lo de forma espontânea. Na ausência dela, justifica-se então a atuação do Estado e dos órgãos reguladores.
Além da Austrália e de iniciativas na França e no Canadá, o mundo precisa agir antes que seja tarde demais. No ritmo atual de erosão financeira, o jornalismo profissional, já em grave crise em muitas partes do mundo em decorrência do duopólio digital, corre o risco de extinção em uma ou duas gerações – ao menos o jornalismo tal e qual nós o conhecemos e pelo qual nos informamos.
E como seria um mundo sem jornalismo que apurasse as notícias, filtrasse os exageros e decantasse versões para delas extrair a verdade? Basta imaginar os efeitos de um rumor criminoso sobre a saúde financeira de uma grande instituição econômica que se espalhasse sem a barreira de contenção criada pela maciça informação jornalística que reponha a verdade. Tais rumores seriam como o fogo em uma ravina seca, morro acima. Sem jornalismo ou com a atividade de tal forma enfraquecida, crises sistêmicas na economia, mas também na política, saúde e na convivência social, se tornariam corriqueiras. Sem jornalismo, fortalecem-se os autocratas e perde-se a referência da verdade. E, sem verdade, perde-se o rumo das escolhas e, portanto, da própria democracia.
Em algumas partes do mundo, como na América Latina, já se vive parcialmente as consequências do desaparecimento do jornalismo profissional, em decorrência de um fenômeno chamado de “desertos de notícias”. No Brasil, por exemplo, 18% da população, o equivalente a 38 milhões de pessoas, em 62% dos municípios do país já não contam com jornalismo local, segundo a organização Atlas da Notícia, cujo salutar projeto de mapear os desertos noticiosos conta ironicamente com apoio do Facebook. As consequências desta dieta jornalística vão desde a perda de identidade local, sem o reconhecimento de pessoas, valores e temas relevantes para as comunidades, até o surgimento de bandoleiros digitais, aventureiros que ocupam os vácuos jornalísticos e, sem ética e princípios, ameaçam políticos e empresários locais, em um processo pendular que se movimenta entre a extorsão e a bajulação sem limites.
Embora revertido dias depois, o anúncio do Facebook de que iria bloquear sites jornalísticos, em resposta à nova legislação australiana, não chegou a causar grande grande surpres. Entre todas as plataformas inconfiáveis em suas relações com veículos jornalísticos, a empresa de Mark Zuckerberg parece se esforçar para liderar a lista. No início de 2018, o Facebook recalibrou sem discussão seu algoritmo para reduzir drasticamente o alcance dos veículos jornalísticos em seu feed. De uma hora para outra, a audiência que vinha do Facebook desabou, a ponto de alguns jornais no Brasil o passarem a considerar quase irrelevante ou mesmo dispensável em seu cardápio de engajamento de usuários.
Mais estranhamente, o Facebook justificou a súbita mudança como um esforço para combater as fakenews – algo equivalente ao prefeito de uma cidade anunciar a extinção do corpo de bombeiros como parte de seu esforço para enfrentar uma onda de incêndios. Quem vive no Brasil, como em tantos outros países que consomem avidamente o Facebook, conhece bem as consequências de um modelo de negócios que se converteu em um Coliseu digital. Nesta arena virtual, muitas pessoas urram ao ver outros se digladiando com golpes baixos e viram o polegar para baixo para pedir o aniquilamento de quem manifesta opiniões dissidentes. As bolhas de ódio, o sufocamento da pluralidade e do jornalismo profissional, o território propício à desinformação e à humilhação dos contrários levaram o Brasil, que se orgulhava de ser um país onde as divergências eram encerradas com um sorriso e um abraço, a uma divisão ideológica extremada e rancorosa que salta das telas para a vida real.
Não é que o Facebook feche os olhos à terra arrasada a seu redor. Em 2017, o Facebook mudou sua missão pública para procurar refletir as crescentes cobranças sobre sua atuação e comportamento. Bela tentativa, mas lamento que a missão da empresa esteja tão ultrapassada pelos fatos. A versão atual e completa do documento, expressa na sua página de relações com investidores, diz: “Fundado em 2004, o Facebook tem como missão dar às pessoas o poder de construir comunidades e, juntos, aproximar o mundo. As pessoas usam o Facebook para ficar conectadas com amigos e família, para descobrir o que está acontecendo no mundo e para compartilhar e expressar o que é importante para elas.”
É uma pena que a realidade seja bem diferente. Não necessariamente construir comunidades dessa forma vem gerando um mundo melhor. No Brasil, como em tantos outros lugares, juntam-se no Facebook comunidades de fanáticos e extremistas, negacionistas da ciência e obscurantistas, que encontram ali terreno fértil para atos desonestos ou para espalhar delírios sobre vacinas a apregoar curas milagrosas para o coronavírus ou mesmo incitar desavenças e violência, com consequências práticas e, por vezes trágicas, na vida de milhares de pessoas.
De mais a mais, a reação do Facebook na Austrália, ao usar o bloqueio de notícias como parte da estratégia de negociação, desmontou de forma aberta sua missão de “descobrir o que está acontecendo no mundo”. Sem acesso ao jornalismo, só se vai encobrir a verdade e descobrir desinformações ou versões oficiais para os fatos. No Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro ataca dia sim e outro também a imprensa, seria um sonho dos autocratas tal bloqueio – de preferência estendido a todas as demais plataformas e canais.
Falta, portanto, ao Facebook mais que verdade e sinceridade na sua missão. O que lhe falta como empresa é um propósito mais elevado, que contribua de fato para construir um mundo melhor. Enquanto não encontra uma razão mais profunda para sua existência, o Facebook está desperdiçando a oportunidade de finalmente deixar de ser uma empresa que é grande para se converter em uma grande empresa. No longo prazo, nenhuma empresa sobrevive a uma visão tão estreita.
*Esse artigo foi distribuído pelo Fórum Mundial de Editores e está sendo publicado em alguns dos principais jornais do mundo