Por Gabriel Moro Dariano, procurador da Fazenda Nacional
O ódio também pode guardar o êxtase. Traiçoeiro e subversivo como outros prazeres covardes, o ódio é capaz de elevar pessoas e ungir líderes, como nos mostra a história e a nossa própria época. O prestigiado Coringa registra bem este espírito do tempo: ao conduzir-nos à exultação de um empoderamento justiceiro, o filme revela o renascimento sombrio de uma fascinante e equivocada vocação redentora do eu e do mundo.
A degradação urbana de Gotham City no final da década de 70 (que precede, aliás, uma virada política e a limpeza da cidade de Nova York) é mais que um mero cenário de desigualdade de classes. Ambiente e enredo simbolizam a epidemia de solidão, ressentimento e desamparo hoje presente na sociedade e, com intensidades variadas, em cada um de nós.
Não é à toa que o sofrimento e a revolta do Coringa decorrem do seu tormento mental e passam por intensa violência psicológica. Daí a identificação e a empatia que temos com o personagem; de nossa adoentada sociedade do ego colhemos frustrações, vitimizações e – à semelhança do vilão – até algum grau de histrionismo. Destes sentimentos e a partir de sentidos mais ou menos virtuais decorre o desejo de (re)ação.
Mas todo o movimento imbuído de um fetiche revolucionário e raivoso contra aquilo que compreende agressivo, maldoso e opressivo carrega a sedução do pertencimento purificador e acaba se tornando o que pretende combater. Paradoxalmente, incorpora tiranias, sumariedades e sanhas punitivas ainda mais sinistras.
Ao oferecer soluções tão atraentes e arrebatadoras quanto abjetas e condenáveis Todd Phillips nos atinge com uma humanidade quase obscena, alcançando com o seu perturbador Coringa a singularidade das grandes obras. A arte é muito mais chocante quando ergue o véu e escancara o que somos do que quando milita em prol do que deveríamos ser. A intensa preocupação com a incitação do filme à violência é, enfim, a maior prova de que ele atingiu o seu objetivo dialético e de que merece ao menos um Oscar: o da paz.