Por Eurico de Andrade Neves Borba, escritor, ex-professor da PUC-Rio, ex-presidente do IBGE
Nas atuais sociedades, a participação popular nos grandes movimentos sociais é imprescindível. Como solucionar os problemas que afligem a humanidade sem unidade de intenções em torno de algumas crenças? Como construir esta indispensável unidade sem referência à necessária solidariedade? Como aceitar a solidariedade sem crença na transcendência?
Tais premissas prosperam com dificuldades crescentes num mundo materialista e individualista, intelectualmente medíocre e socialmente vulgar.
Sem o exercício da solidariedade, torna-se cada vez mais difícil sustentar uma sociedade democrática, inclusive pela crescente impossibilidade de fazê-la funcionar. Essa situação está a exigir o emprego progressivo da força contra desordens sociais e crimes.
O crescente desnível da distribuição da riqueza gerada e a questão ambiental são problemas de fundamental importância. As soluções são impossíveis de serem encontradas no atual ambiente social, político, econômico e jurídico. O eleitorado, o povo, tende a não perceber o perigo para a democracia que é a pauperização da maioria da humanidade. O sistema liberal capitalista não precisa dos pobres, nem com eles honestamente se importa.
Progressivamente dois inaceitáveis grupos humanos estão se formando: os muitos que nada possuem e os poucos que possuem todos os bens e serviços de que necessitam para viver com dignidade em diferentes patamares de riqueza. O primeiro grupo, o mais numeroso, não detém os conhecimentos que se tornaram requisitos essenciais para a participação no moderno mundo do trabalho.
Superar o insulto da miséria e do progressivo desnível de renda, atentar para o meio ambiente, que coloca em risco o futuro físico da humanidade, seria oneroso e perigoso para o sistema político dominante. O atual dinamismo e a organização do pensamento individualista, do liberal capitalismo, impedem a solução da questão do emprego e da degradação ambiental – é um sistema neurótico: sabe que a tragédia acontecerá, mas permanece usufruindo as benesses do poder por mais tempo que possa... O mercado, por si só, não resolverá o problema, pois a divisão do trabalho se impôs com tal magnitude e especialização, que a formação intelectual passa a ser o fator determinante para o exercício da liberdade e para a posse de um posto de trabalho qualquer.
Surge uma nova forma do poder político: – a dominação do saber que, distanciado da reflexão ética, é opressivo por desconhecer o próximo e a necessária virtude da compaixão, que poderia vir a ajudar na convivência pacífica dos dois grupos, enquanto que as soluções estruturais permanentes estivessem sendo gestadas.
Para que a incontornável única alternativa política para o caos humano que cada vez mais nos oprime, a que garanta educação de qualidade e a manutenção do meio ambiente em limites seguros para a vida, o Estado democrático de direito precisará intervir, direcionando e administrando investimentos para as áreas citadas, dos recursos oriundos da tributação progressiva, sobre o que for democraticamente considerado posse excessiva por pessoas ou empresas, em face da inaceitável pobreza da maioria.
Esses procedimentos políticos, mesmo que reflitam decisões sacramentadas pelas urnas, não encontrarão receptividade na classe dominante, pois a ela falta a necessária crença e aceitação da solidariedade, estabelecendo-se, então, as condições de um vasto e danoso conflito social.
As leis devem ser cumpridas não pelo medo da repressão policial, mas pela aceitação consciente dos pressupostos éticos que nortearam suas elaborações e destinações.
À ação política cabe explicitar essas crenças que, apoiadas por instituições democráticas estáveis e mídia livre, conduzirão a manifestações periódicas da população (eleições), dando sustentação popular consciente, para as decorrentes ações publicas que concretizarão os objetivos pretendidos pela maioria: emprego, participação, liberdade, justiça e paz.
As religiões, mormente as cristãs, de onde se esperam inspirações de fraternidade e comportamentos morais, com raízes fincadas na crença do Transcendente, fracassaram nas suas missões e estão perplexas e inoperantes perante o crescente caos social, a violência e o individualismo. A cidadania encontra-se sem orientação política, crítica e segura, sobre o que pensar e em que acreditar. Tal situação vai jogando os povos nos braços da irresponsabilidade demagógica da política, da indiferença debochada e cínica da maioria dos povos, que assim se comportam pela ação deliberada da classe dominante, que aperfeiçoa seus mecanismos de dominação, com o uso cada vez mais intenso da modernidade tecnológica descolada da ética.
A solidariedade pode vir a ser um bom negócio... Garantiria e aperfeiçoaria, no longo prazo e pacificamente, a transformação de uma sociedade que oprime numa outra forma de convivência solidária que liberta, promovendo o sonhado "Humanismo Integral".
No médio e no longo prazo, as pessoas humilhadas e miseráveis, a maioria da população mundial, podem vir a escolher entre viver na miséria, silenciosos e submissos, sem esperanças de usufruir ao menos pequenas parcelas do atual extraordinário desenvolvimento, ou lutar nas ruas, exigindo do sistema um mínimo de atendimento de suas necessidades humanas básicas, uma pobreza digna e o respeito que lhes é devido pela simples razão de serem pessoas, cidadãos e cidadãs.
Persistindo o atual quadro global de comportamentos e intenções, só nos resta esperar o pior.