É possível dizer que a adoção existe em um país que sequer consegue contabilizar as crianças e os adolescentes encarcerados em abrigos? Lá entram bebês e são despejados quando completam a maioridade, sem que ninguém tenha acesso a elas. Em que o Cadastro Nacional da Adoção não funciona e os candidatos a adotarem aguardam cerca de uma década, sem que lhes seja dada a chance de conhecer quem está apto à adoção?
Cerca de 100 mil crianças invisíveis sem que as milhares de pessoas há anos cadastradas à adoção tenham acesso a elas
MARIA BERENICE DIAS
Advogada Vice-presidente nacional do IBDFAM
Foi este o motivo que levou o IBDFAM — Instituto Brasileiro de Justiça — a apresentar o Estatuto da Adoção - PLS 39/2017, elaborado por juízes, promotores e advogados que atuam em Varas da Infância e da Juventude. Seu propósito é atender ao comando constitucional que garante a crianças e adolescentes o direito à convivência familiar. É indispensável estancar as chamadas "adoções diretas" – entrega de crianças, sem a participação do poder público; retirar do Poder Judiciário o encargo de caçar parentes com quem a criança não tem vínculo de afinidade e afetividade. É urgente garantir acesso dos grupos de apoio à adoção e dos candidatos aptos a adotar às casas de abrigamento. É a única forma de dar a grupos de irmãos, adolescentes, a crianças doentes ou deficientes a chance de serem adotados.
As críticas dos órgãos de proteção à infância foram imediatas, sem que fosse apresentada qualquer sugestão ou emenda.
No entanto, se nada for feito, continuará tudo igual: cerca de 100 mil crianças invisíveis, esquecidas em abrigos, sem que as milhares de pessoas há anos cadastradas à adoção tenham acesso a elas. Aliás, são estas dificuldades que levam mães a entregar os filhos a quem os queira, pois seu desejo é que eles sejam adotados, e não que fiquem abrigados.
Claramente, a responsabilidade deste caos é do próprio Estado, que acaba criando um verdadeiro ciclo do abandono. Crianças estão crescendo sem que lhes seja garantido o direito a um lar. Quem quer adotá-las desiste, cansa de esperar, e acaba fazendo uso da reprodução assistida. Conclusão: crianças sobram amontoadas nos abrigos.
Diante desta perversa realidade, é possível dizer que a adoção existe?