Um bombardeio alemão devastou o centro de Manchester durante a II Grande Guerra. Mais de três décadas depois, o imaginário bélico e a experiência sensorial das frentes de batalha encontravam-se musicalmente traduzidos pelas bandas de rock formadas na cidade. Dentre tantos outros, um conjunto chamado Joy Division, liderado pelo cantor Ian Curtis, transfigurou à perfeição aquele evento traumático, materializando-o numa sonoridade dura, nos versos trágicos e desencantados que entoavam, nos ritmos cadenciados, retos e repetitivos das canções que compunham para dançar e se divertir junto com os amigos.
No início da década de 1980, portanto, os ataques aéreos ganharam a forma de uma representação alegórica, moldaram-se numa linguagem pop, refeitos para consumo massivo, adequados às culturas juvenis e às estratégias de identificação subcultural. Seja em termos poéticos ou performáticos, o punk e o pós-punk inglês foram além da mera semantização da guerra. Mais do que isto, presentificaram-na. É pouco (ou é impreciso) dizer que se inspiraram nela, tão somente.
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Passaram-se 15 anos. Na metade dos anos 1990, Manchester foi atingida outra vez. Um atentado a bomba assumido pelo IRA (o Exército Republicano Irlandês) ocorreu nas redondezas do Arndale Center, um shopping popular situado a algumas quadras de Piccadilly Gardens, no centro da cidade. Como havia ocorrido anteriormente, a música pop não passou ao largo, assumindo o trágico acontecimento como tema a ser enfrentado, memória a ser emoldurada e, sobretudo, como carga cognitiva a ser esvaziada através de sua repetitiva exposição midiática.
Hoje, para alguém na faixa dos 40 anos de idade, é fácil recordar a marcha estilizada de Bono Vox, seus passos marciais combinados ao ritmo da bateria, cantando Sunday Bloody Sunday, no final do anos 1980. À frente do U2, o cantor irlandês estava se referindo às lutas separatistas que afligiam, há muito (e ainda afligem, embora muito mais contidas), o Reino Unido. Era um repúdio aos atentados perpetrados pelo IRA e a todo e qualquer ato de barbárie política que a eles se assemelhassem ou que lhes desse continuidade, como ocorreu em Manchester.
No último dia 22 de maio, a cidade foi alvo de uma ação terrorista num show da cantora norte-americana Ariana Grande. O ataque se deu muito próximo ao local onde havia ocorrido o bombardeio de 1996. O contexto histórico e as razões pontuais que o justificam, bem como as características que o definem, são muito diferentes, não precisaríamos sequer dizer. Justapondo os três acontecimentos, no entanto, é impressionante (e resulta até assustador) observar o modo como terror e música pop parecem ali se alimentar, unidos num rebatimento mútuo, numa pulsação dobrada e corresponsiva. Outros exemplos, por certo, não faltariam.
Sobre o caso específico, vale destacar o quanto se adequa aos padrões operacionais instituídos
pelo terror nos últimos anos, reproduzindo-os quase à risca: (1) a aparição randômica (ou aparentemente randômica, como podemos suspeitar); (2) o ataque a alvos civis como estratégia de guerra; (3) a missão suicida; (4) cumprida por um agente "interno". Provavelmente – como se disse ao início das investigações – tenha sido uma represália aos ataques norte-americanos realizados na Síria há cerca de dois meses.
Também chama atenção, além do acionamento de um certo imaginário mítico da música pop no local – a música pop como plataforma para enfrentamentos políticos, eixo em torno do qual as tensões macropolíticas se refazem e acontecem –, um duplo recorte que parece ter sido adotado, numa clivagem inédita: um recorte geracional e de gênero.
Ariana Grande canta para um público feminino, adolescente e pré-adolescente, em sua grande maioria. Produz-se, através dela, uma pedagogia do amor romântico e dos papéis de gênero, atrelada ao consumo, às redes sociais e às novas mídias. Colocam-se, portanto, de um lado, o culto à beleza física, os corpos adolescentes saudáveis e atléticos, a cultura da moda, as celebrações escapistas e os fluxos de informação; de outro, o fundamentalismo religioso, a desconfiança quanto aos valores ocidentais e a recusa do modo de vida norte-americano como padrão global. Ao lado da música pop adocicada, do Instagram e do WhatsApp como versões do paraíso na Terra, irrompeu a tragédia e a ameaça real.