Os jornais as adoram: as exceções. O menino carente que passou no vestibular após estudar em livros encontrados no lixo. A menina que enfrentou a fome e a miséria até se tornar médica. O vigia noturno autodidata que abriu uma empresa e ficou milionário. A mãe de família que equilibrava quatro empregos e colocou todos os filhos em escola particular. Com frequência, essas histórias estão nas seções de "notícias positivas" para servir de inspiração.
Mas, com quase a mesma frequência, elas são usadas para diminuir as pessoas que, ao enfrentar os mesmos obstáculos, não alcançam as mesmas vitórias: aponta-se como falha pessoal a história do menino carente que saiu da escola na segunda série, a da menina que enfrentou a fome e a miséria e se prostituiu, a do vigia noturno que foi demitido, a da mãe de família que precisou da ajuda dos filhos para pôr comida na mesa. Só que essas pessoas "falhas" são a maioria. Essas pessoas somos nós.
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Para mim, como parte da classe média porto-alegrense no universo acadêmico, é improvável algum dia conhecer um astronauta, uma advogada da ONU, um ator de Hollywood. Para alguém que nasce em um barraco sem saneamento básico, é improvável conhecer um empresário, um diretor de cinema, um operador da bolsa de valores. E assim é quase impossível que nos tornemos alguma dessas coisas. As nossas realizações costumam estar à meia distância entre o que já temos e o que sabemos existir.
A maioria de nós não teria condições para começar a vida profissional como camelô e construir um império multimidiático. O que não é um problema. Em geral as pessoas têm zero interesse em construir impérios de qualquer espécie. O problema é nossas classes mais baixas serem tão injustamente baixas, é os profissionais cujas atividades exigem pouca qualificação não terem acesso à condição que deveria ser básica mas aqui é luxo: apenas ter o suficiente.
Não podemos todos ser juízes, cirurgiões e milionários. Precisamos que alguns de nós limpem as ruas, semeiem o campo, preencham as prateleiras do supermercado. O mundo seguiria seu curso de maneira razoavelmente inabalada sem os craques do futebol, mas uma cidade chega perto do colapso em uma semana sem garis. Significa que garis deveriam ganhar os mesmos supersalários do futebol europeu? Não sei, mas tenho certeza de que eles merecem moradia, medicamentos, educação, transporte e a possibilidade de cuidar de suas famílias.
As exceções são admiráveis. Elas expandem os limites da experiência humana trivial. Quando uma minoria move montanhas, o resto de nós se sente mais capaz de empurrar sua própria pedra encosta acima. Mas exceções não servem para nivelar a norma, muito menos para legislar. É preciso lembrar disso quando os jornais mostram as histórias – admiráveis, de fato – de senhoras e senhores que trabalham para além de seus 70 ou 80 anos. Bom para eles, mas não para todo mundo.
Algumas pessoas enfrentarão doenças ou dores nas costas, outras vão preferir fazer trabalho voluntário, dedicar-se à leitura e ensinar os netos a plantar legumes. Não podemos todos ser heróis. Não deveríamos precisar ser heróis para viver com dignidade. Todas as realizações do potencial humano são admiráveis e têm valor, da cura ao câncer a uma horta de tomates.