Textos sobre a cidade originam-se de percursos subjetivos ligados não à praticidade do trajeto, mas às relações psicológicas estabelecidas entre pequenos espaços e os sujeitos, que deles se apropriam no decorrer do tempo. Interagindo de forma positiva com a sensibilidade do indivíduo, esses cenários urbanos, por estarem ligados a acontecimentos marcantes ou por revelarem aspectos arquitetônicos expressivos, ocasionam mudanças comportamentais em expressiva parte da população, alterando a rotina de seus trajetos. Pode-se dizer que labiríntica ou configurada como um tabuleiro ordenado, a planta de uma cidade é o que resulta das perambulações de seus habitantes.
Entre um expressivo grupo de intelectuais sul-rio-grandenses que direcionou sua literatura para a realidade das cidades destaca-se a figura de Athos Damasceno Ferreira, cuja obra voltada para a atmosfera e vida cotidiana porto-alegrense foi considerada, por Guilhermino Cesar, a "maior já escrita por um só homem sobre a Capital do Rio Grande do Sul."
Athos debruça-se sobre Porto Alegre traçando recortes, oferecendo cartões postais dos logradouros antigos, fixando momentos significativos de uma vida que já foi e não é mais.
Três obras, particularmente, assumem uma maior cumplicidade com a Cidade que ele tanto amava: Poemas da minha cidade, Imagens Sentimentais da Cidade e já no final de sua vida Colóquios com a minha Cidade, um retrato colorido dos costumes e modos de vida da Porto Alegre de outrora.
Em Poemas da minha cidade, Athos busca, sob a forma de testemunho, resgatar, do esquecimento e do ostracismo, nomes, espaços, costumes valores e afetos da Cidade antiga.
Porto Alegre é determinada por uma cartografia sentimental cujos marcos referenciais são festas e cerimônias populares, praças, bares, becos pobres e cortiços, rio e paisagens genéricas. Entre outros, o poema "Festa do Divino" fala dos coretos, quitandas, das bandeiras coloridas, dos rapazes que mandavam balas e amêndoas para as moças. Fala da multidão espalhada pela rua, revela a atmosfera ingênua dos namoros recatados, confere a venda dos santinhos, os fogos e os balões.
Mas Porto Alegre também tem suas águas e deve muito de sua beleza ao rio. É para o espelho das águas que o Poeta, obsessivamente se volta. É dele que falam os poemas "As docas", "Praia de Belas" e "Soneto dos Salgueiros". Em "Nossa Senhora dos Navegantes", Athos resgata um dos momentos mais significativos de caráter social e religioso, do imaginário porto-alegrense, até hoje presente no calendário de festas da Cidade. Pode-se sentir o carinho por Nossa Senhora, linda a sorrir aos seus fiéis marujos, "nesta festa de mastros sobre as águas...", o rio privilegiado como o trajeto da Santa.
O bloco que fala das praças retrata um dos espaços mais tradicionais da Cidade: Alto da Bronze. A praça é ponto de partida para retratar a Cidade provinciana, os casarios cobertos de hera, os costumes sociais rígidos, a austeridade dos habitantes, a presença de sociedades secretas. Com a "Praça da Harmonia", um dos poemas mais conhecidos de Athos, o autor traz à vida o meio literário local do início do século, a cidade letrada de Porto Alegre que encontra nos jardins da Praça da Harmonia, o espaço aberto para a produção de poesias e para as discussões literárias. Seus bancos de mármore, de losangos pretos e brancos, posicionados de frente para o rio, o lindo chafariz de bronze e louça tornavam a Praça no final do século XIX um dos recantos mais apreciados pelos porto-alegrenses. Reduto dos poetas, é com grande tristeza que Porto Alegre vê a velha Praça engolfada pelas obras da construção do cais. E assim, as noites enluaradas, propícias às tertúlias poéticas, tornam-se elementos do passado.
Em a "Praça Quinze", encontra-se retratado o famoso Chalé, local de encontro boêmio do grupo de Athos, onde uma orquestra de apenas três músicos tocava de tudo, de Wagner, Chopin a Beethoven.
Os bares de Porto Alegre formavam, então, um pequeno microcosmo na cidade. Entre eles, o Gambrinus no Mercado e o Zither Franz. Este, decorado com aquários e galharias de cervos pelas paredes, servia pratos alemães como o "Queijo de porco", salsicha e Eisbein com chucrute. Além desses havia o Liliput, o Hubertus e o Eduardo, com canecões de louça com capacidade para um litro de chope.
Mas a Cidade dos bares, das praças e das singelas festas populares opõe-se à Cidade de redutos sombrios, onde vozes cansadas e segregadas ressoam por entre casebres e baiúculas. É o mundo sofrido dos negros que o Poeta descreve em o "Beco do Marmeleiro", "Ilhota" e "Rua dos Pretos Forros". O vento, uma característica sulina, oprime e acentua a dor dos que sofrem. Veículo da palavra, o vento quebra o silêncio da noite dos pretos forros, falando de sua desgraça.
Em a "Ilhota", o Poeta prepara o leitor para o cenário no qual irá trabalhar: "Esta é a ponte que desemboca nos quilombos". O riacho barrento abraça o mundo bloqueado dos negros que se espalham pelos casebres de barro batido; as águas turvas são imagens da existência banal e precária daquele bolsão de miséria:
"Veneza? ... Pois sim! ...
Caíques, fingindo de gôndolas, atados aos frades de pedra
De certo ninguém vai falar de pandeiros,
De flautas,
violões,
cavaquinhos..."
A Ilhota é uma excrescência que a noite acoberta em seus braços. Sombras desfeitas espreitam a agonia e a opacidade daquele mundo. Órbitas mortas, sugam a visão fugaz e opaca do cenário em ruínas.
Em 1940, quando das comemorações do bicentenário de Porto Alegre, Athos é premiado em concurso da Prefeitura Municipal, com a obra Imagens Sentimentais da Cidade. O texto, revirando os baús dos antepassados portugueses, constrói o inventário do cotidiano porto-alegrense. Tratando da arquitetura pesada e rebuscada, da ostentação ingênua de seus casarios, da mesa farta, e da austeridade dos trajes e costumes, não esconde o espírito galhofeiro e zombeteiro do português, revelado nos jornais satíricos e políticos, no cotidiano popular e nos festejos momescos. Colorindo com observações pitorescas e irônicas a Cidade pasmacenta, suja e escura, desvela a buliçosa Porto Alegre do Século XIX com suas serenatas e saraus, com suas bacalhoadas e mocotós, com suas rinhas de galo, com seus moleques e figuras típicas.
Colóquios com a minha cidade, editado um ano antes da morte de Athos Damasceno, explora novos enfoques do cenário urbano: as sacadas e as sacadinhas porto-alegrenses, os pomposos fotógrafos na disputa da ingênua sociedade da época, as singelas comemorações de Natal e dos Reis na Cidade, a alegria voraz do homem sulino frente à arte doceira, bem como o hábito estimulante da cerveja alemã.
Athos faz uma descrição primorosa das sacadas com seus gradis de ferro com desenhos de folhas orbiculares, lunadas e espatuladas, cálices de sépalos escamosos, folhas d'água, cúpulas e tulipas, combinadas em curvas graciosas. A crônica da sacada é a crônica da Cidade, já que ela está intimamente ligada a fatos corriqueiros, miúdos, bem como a acontecimentos importantes do Burgo açorita. Suprindo a falta da iluminação pública, as sacadinhas ostentavam a luz mortiça dos candeeiros domésticos que destacavam as plantas nativas e exóticas, as samambaias, as begônias e as orquídeas, borrifadas à luz do dia por regadores bojudos. Utilizadas como local de castigo para as crianças, que se vingavam cuspindo na cabeça de transeuntes incautos, as sacadas eram também o cenário adequado para a exibição da anatomia e beleza das mocinhas caseiras. Ponto certeiro da retórica porto-alegrense, tribunas de onde se despejava a oratória cívica e o brado forte da política, eram as sacadas o delírio da multidão urbana, sedenta de distrações novas no Burgo pasmacento.
Mas nem tudo era folguedo na Capital e, quando das graves cerimônias religiosas, as sacadas recobriam-se de damasco e de veludo, enfeitadas para a passagem de Irmandades e Confrarias.
Ao estudo das sacadas e sacadinhas porto-alegrenses, soma-se o registro das festas natalinas da Cidade, bem como de suas tocantes festividades dos Ternos de Reis, com seus instrumentistas e cantores. Os espetáculos pirotécnicos, os Bailes Masquês e as Cavalhadas, conjugando imagens pitorescas e personagens típicos da Província apontam para a diversidade étnica, linguística e cultural da Capital sulina.
Não abdicando, em sua vida, da condição de morador de Porto Alegre, Athos Damasceno, ao tematizar sua cidade, reativa suas tradições culturais e sociais, transfigurando e potencializando os aspectos singulares citadinos através de um discurso literário urbano original.
Ousando anexar ao imaginário social gaúcho as figuras prosaicas dos fundadores açorianos, em sua rusticidade e tacanhez, e as imagens pioneiras de uma Cidade desvencilhadas do véu mitificador comumente associado à fundação dos espaços urbanos, o texto damasceano oferece uma nova leitura da Capital porto-alegrense, depurada do discurso oficial que confere à história uma conotação de heroicidade e de grandeza que excede, muitas vezes, os fatos verídicos.
Assim, nada mais justo que homenagear Porto Alegre, relendo a obra deste autor, que pela abrangência de seu ver e de seu sentir, configura-se como o cronista da Cidade por excelência.