A história das democracias, disse o cientista político inglês David Held, é enigmática. Surgindo por volta do Século V a.C. na Grécia, o modelo democrático ateniense ficou marcado por aqueles que, segundo seus críticos, seriam seus grandes problemas: a tendência à demagogia e a possibilidade de maiorias despreparadas para participar da política tomarem más decisões. Não surpreende, portanto, que filósofos como Platão e Aristóteles classificaram o "governo do povo" como um "mau empreendimento".
Ocorre, no entanto, que mudam as conjunturas históricas e, com elas, variam também as necessidades políticas e sociais. Assim, o modelo que havia caído em desuso durante a Idade Média e que, na vigência do Absolutismo, não fazia sentido para mediar as relações de poder, volta à cena e se renova com o avanço da modernidade.
Forjada com o pensamento liberal ao longo dos séculos 18 e 19, a democracia dos modernos é diferente da dos antigos. Privilegiando a representação em detrimento da participação direta na tomada de decisões, o ideal democrático moderno estabelece suas bases em um conjunto de direitos que passam a ser garantidos pelo Estado, tais como: o respeito à Constituição e à lei; a realização de eleições regulares; o direito de votar e ser votado; a possibilidade de que as oposições vençam; e a liberdade de expressão e de livre manifestação.
Essencialmente procedimentais, mas servindo como regras básicas do jogo político, esses critérios ajudaram a caracterizar um modelo de democracia representativa que se torna hegemônico na segunda metade do século 20.
Em estudo publicado na década de 1980, período no qual vários países começavam a instalar novos regimes democráticos, o cientista político Adam Przeworski dizia que, para ser democrata, era preciso "amar a incerteza". A incerteza inerente à dinâmica democrática, porém, se refere aos resultados obtidos, não aos procedimentos aplicados pelas instituições. Em outros termos, a surpresa decorre da apuração dos votos, não admite a aplicação de regras do jogo alternativas quando o resultado das urnas, por exemplo, desagrada.
Pensar nos elementos centrais da democracia é algo necessário. Principalmente em conjunturas marcadas pela "binarização" do debate e pela possibilidade de que, na busca por resultados específicos, as regras do jogo sejam descartadas ou subvertidas. Tom Jobim teria dito que o Brasil não é para principiantes. O Brasil, não se sabe. O jogo democrático, certamente não é.
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Artigo
Carlos Artur Gallo: governo do povo, governo das incertezas
Doutor em Ciência Política (UFRGS), professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSM
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