O morticínio na boate Kiss, em Santa Maria, completa agora três anos, mas a tragédia continua à solta, multiplicada em si mesma - sem responsáveis nem culpados -, como se houvesse sido um acidente banal, não um crime tecido pelo desdém da cobiça.
Passaram-se quase mil dias, mas hoje sabemos oficialmente muito menos do que conhecíamos na madrugada de 27 de janeiro de 2013. Ali, naqueles 200 cadáveres amontoados um ao lado do outro num espetáculo macabro, foi fácil entender tudo e identificar os autores.
A raiz da tragédia estava à mostra. O horror e o pranto nos deram clarividência para penetrar nas causas. A máquina de matar fora armada pela irresponsável ânsia de lucro dos donos da boate e pelo grotesco infantilismo piromaníaco da banda, sob o olhar complacente (ou conivente) da prefeitura santa-mariense e dos bombeiros, que licenciaram uma ratoeira como centro de diversão.
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Hoje, a lenta burocracia se sobrepõe à realidade e um manto de amnésia envolve a tragédia, talvez rumo à impunidade.
No entanto, o inquérito policial foi minucioso. Em 13 mil folhas, os delegados Marcelo Arigony e Sandro Meinerz pediram o indiciamento de 16 pessoas e apontaram outras 12 implicadas. O prefeito Cézar Schirmer só não foi indiciado por dispor de "foro especial". Mas pediram que o Tribunal de Justiça o processasse por homicídio culposo e que a Câmara Municipal o julgasse por improbidade administrativa.
Ao passar dos dias, o número de mortos aumentou, chegando a 242. Ainda hoje, pelo menos 400 dos 680 intoxicados continuam em tratamento médico, com sequelas respiratórias. A partir do Ministério Público, porém, o processo judicial atenuou responsabilidades.
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No sexto mês da tragédia, escrevi aqui:
"A dor está presente e o horror ainda amedronta, mas os passos da Justiça soam como se os 242 mortos surgissem de um acidente a esmo - desses que ocorrem ao descer uma escada e tropeçar num degrau - e no qual não há responsáveis nem culpados. A cada nova decisão, mais se atenuam as responsabilidades e os culpados desaparecem. Tudo se dilui na interpretação mecânica das leis, como se a lei dispersasse a realidade e suas consequências, tal qual o vento dissipa o pó".
Fui pessimista? Em julho de 2013, o Tribunal de Justiça já tinha mandado soltar todos os presos. O Ministério Público excluíra da denúncia por "homicídio culposo" boa parte dos indiciados, além do prefeito. Os promotores Maurício Trevisan e Ivanise Jann de Jesus isentaram de crime de improbidade o prefeito e auxiliares, e o Tribunal teve de mandar arquivar tudo sobre eles.
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Só em dezembro de 2015 os donos da boate e os fogueteiros da banda começaram a depor na Justiça. Tiveram três anos para preparar álibis ou forjar situações, num processo que - a seguir assim - talvez conclua que os únicos culpados são os 242 mortos.
Os bombeiros que falsificaram vistorias para licenciar a boate, foram julgados pela Corte da Brigada Militar e condenados a penas menores de prisão. Na Justiça civil, o major chefe do Comando Regional foi sentenciado a seis meses em regime aberto, pena substituída por "prestação de serviços". Há tempos já está livre!
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Santa Maria fez do luto uma luta por Justiça e aí está o exemplo a seguir, sem nada esconder ou ocultar. Mas...
Na tarde de segunda-feira, 18 de janeiro, um incêndio na linha de fibras da "fábrica 1" da empresa chilena de celulose CMPC cobriu a cidade de Guaíba de fumaça negra e pestilenta. Houve acessos de tosse entre os moradores próximos, mas nada chegou aos meios de comunicação.
A ONG "Amigos do Meio Ambiente de Guaíba" (AMA) difundiu na internet fotos impressionantes da grossa fumaça e duvidou da versão da fábrica chilena de que se incendiaram apenas cabos elétricos internos. E alertou de que, na vasta rede elétrica da fábrica, o fogo polui o ar com metais, dioxinas, furanos e as perigosas bifenilas policloradas. Veja-se em qualquer manual a ação terrível desses nomes esquisitos...
Fosse o que fosse, o incêndio em Guaíba torna ainda mais presente a tragédia de Santa Maria, três anos depois.