Eram 11h da manhã. Era um dia qualquer, e como em qualquer dia eu caminhava de casa até a parada de ônibus, fazendo planos para o fim de semana com o Gringo pelo celular. Mal dobrei a esquina e nossa conversa foi interrompida.
"Não grita!". Ora, que coisa mais estúpida, que ordem mais impossível de obedecer quando tem uma faca encostada na tua barriga É claro que eu gritei! E o grito chegou pelo telefone para o Gringo, que lá do outro lado do Estado nada podia fazer para me ajudar naquele momento.
Eu me lembro bem da faca, daquelas forjadas em presídio, com uma lâmina de aço amarrada a um cabo de madeira. E me lembro daqueles olhos raivosos e das palavras cuspidas. "Não grita!". Lembro do gurizão esguio, cor de cuia, reforçando da outra calçada: "Fica quieta!". Eram dois e uma faca contra uma. Entreguei o celular e corri. Não podia voltar para casa - a uma quadra dali - porque foi nessa direção que os assaltantes fugiram. Apenas corri. Sem voz, fôlego ou rumo.
Tudo muito rápido. Ler esses parágrafos acima demorou mais que o assalto.
Naquela manhã, virei um número: segundo dados da SSP divulgados por ZH, no ano passado a cada duas horas uma pessoa tinha um telefone furtado ou roubado em Porto Alegre. Faça as contas: 12 por dia somariam 4.380 por ano. Virei uma de 4.380.
Só que o assalto foi apenas parte da história. "Tu sabes que não vai dar em nada, né?".
Eu nunca tinha sido assaltada na vida. Achei que devia registrar a ocorrência porque sim, porque era o caminho lógico: sofreste alguma violência, procura socorro junto a quem tem que zelar por tua segurança. Não é? Fui atendida por um oficial sem um pingo de sensibilidade. Talvez porque eu era apenas mais um número, apenas mais uma ex-dona de um celular impossível de ser recuperado, apenas mais um rosto soluçando. Chorei de raiva pela brutalidade do assalto, pela sensação de vulnerabilidade. "Quer fazer o registro para bloquear o aparelho?". Dane-se o telefone! Queria meu chão e minha liberdade de volta. "Era isso, moça?".
Foi em junho de 2014. Por que falar disso agora?
Escrevo em solidariedade à estudante que expôs no Facebook um estupro no Parque da Redenção em plena luz do dia. Óbvio que a violência que ela sofreu foi absurdamente maior que o "meu" assalto. Eu a admiro por um relato que exige muita coragem. Quantas outras mulheres passam por violações semelhantes e se calam porque "não vai dar em nada"? A frustração que vem da certeza da impunidade pode nos paralisar.
Escrevo porque percebi a importância de ser "apenas um número". Numa entrevista à minha colega Vanessa da Rocha durante o TVCOM 20 Horas, o tenente-coronel Francisco Vieira, responsável pela segurança na Redenção, afirmou que é baseada no registro de ocorrências que a Brigada Militar planeja suas ações. E quem sabe, quiçá o volume de ocorrências alerte para a necessidade de reforçar o policiamento pelas ruas da Capital?
Por isso meu "bravo!" a essa brava estudante e a grupos como o B.O. Coletivo e o Se Essa Rua Fosse Nossa. Temos que ser protagonistas de uma batalha contra o crime e a violência. Se acreditarmos no "não vai dar em nada", se não houver denúncia de roubo, assalto, assédio, estupro, vão achar que vivemos num paraíso! A gente tem que se cuidar, uns dos outros.
Hoje eu sei que é possível registrar o B.O. pela internet, teria me poupado um constrangimento. Descobri que há vários recursos para bloquear e rastrear e até inutilizar o telefone. E aprendi o absurdo: que não posso usar o celular na rua.
A casca engrossou: fiquei mais vigilante, mais atenta. Portanto, desculpa, moço que caminha em minha direção com a mão no bolso, vou desconfiar e desviar de ti. Não atendo telefone em espaços abertos. Não checo mensagens no ônibus. Demorou algumas semanas, mas voltei a fazer a pé o mesmo trajeto de casa até a parada - apesar de acabar lembrando do assalto toda vez que passo por aquela esquina.
A casca engrossou, mas me recuso a me abrigar numa redoma. Nunca vou deixar de descer a escadaria perfumada de goiabas da Couto de Magalhães. A rua não pode ser deles, a rua também é minha.