Este texto poderia começar se detendo no cotidiano de Esteban Volkov Bronstein, um químico de formação com a visão da esquerda trotskista delineada em suas veias. Ou talvez lembrando quem foi seu avô, Lev Davidovich Bronstein, um judeu russo que, como outros tantos, deixou a Europa na primeira metade do século passado sonhando em tornar o mundo mais justo e solidário.
Até aí, nada muito surpreendente para a época. Então, vamos às peculiaridades:
Volkov, aos 14 anos, em agosto de 1940, viu quando o avô jazia com uma picareta cravada no crânio por encomenda do inimigo. E Lev Bronstein, esse avô, era Leon Trotsky, o revolucionário que tentou pôr seus sonhos de igualitarismo em prática, organizou o Exército Vermelho russo e depois se indispôs com o ditador soviético Joseph Stalin a ponto de este alcançá-lo no México, onde vivia seu exílio e onde morreu pelas mãos de um sicário.
Do México, Volkov, que viveu o momento do assassinato de Trotsky, falou com Zero Hora em conversas entrecortadas que se estenderam pelos dias 28 e 29. Ao telefone, a voz firme não acusa os 86 anos. Volkov, repentinamente, começa a dizer "alô", "alô". Reclama que não escuta. Dá outro número da sua casa. Também fala "alô" e xinga a mudez do aparelho.
- Ocorrem coisas estranhas, o que está ocorrendo? - indaga, transparecendo certa desconfiança justificável pela sua história.
Aquela tarde de 20 de agosto em que chegava da escola até a casa onde vivia com o avô é lembrado por ele em cada detalhe. Trotsky, avô carinhoso, que fazia as vezes de pai, ainda tentou protegê-lo da experiência traumática.
- Mantenham o menino distante. Ele não deve ver esta cena - gritava o revolucionário.
ZH perguntou a Volkov: o legado de Trotsky pode ser visto também nos países capitalistas que adotaram o Estado de bem-estar social? Não. Ele não dá concessões nem ao stalinismo que matou seu avô nem ao capitalismo.
"O capitalismo se torna a cada dia mais desumano, explorador e escravista. Com o auxílio do comunismo chinês, que cria o dumping dos salários dos trabalhadores em nível mundial, pela mão de obra barata. Dá argumentos a empresários para pagar cada vez menores salários e aumentar jornadas de trabalho e, supostamente, competir com os chineses."
Com toda essa verve, assinalando que vê o capitalismo atual como cada vez mais especulativo, Volkov ainda se preocupa em ressalvar:
- Sou químico, trabalho na fabricação de hormônios, entre eles os anticoncepcionais. De nenhuma maneira sou um teórico marxista.
Diz apenas que a convivência próxima com o avô fez dele um aprendiz da luta "anti-imperialista e pela defesa da soberania dos povos".
E como foi essa convivência?
"Cheguei ao México em agosto de 1939, com 13 anos, procedente de Paris, trazido por velhas amizades de Natalia e Trotsky, forjadas na Rússia. Eram o casal Margarita e Alfredo Romer, sindicalistas. Quando cheguei à casa de Coyoacán, foi uma tremenda mudança na minha vida (...). Era uma improvisada grande família, cheia de calor e vitalidade, com dezenas de jovens trotskistas de diferentes nacionalidades, principalmente americanos, que rodeavam Trotsky e Natalia. Eram voluntários, que vinham como guardas e secretários. Trotsky e Natalia eram o centro dessa pequena comunidade. Eu saía cedo para a escola, onde ninguém sabia da minha identidade. Regressava quando a tarde já avançava e me reincorporava a minha família. Na casa, vivia-se sempre com certa tensão, à espera de algum ataque stalinista."
Volkov diz que aprendeu muito com o avô, mas deixa um sentimento de que Trotsky não queria as escaramuças da política para o neto.
"Trotsky sempre me protegeu da política. Ele dizia aos seus secretários e seguranças para não falarem de política comigo. Queria me afastar da política. Mas eu vivi uma vida normal, muito próxima dessa adrenalina que se vivia na casa de Trotsky."
O legado se estende para o campo da ética:
"O pensamento e a ação devem ser uma coisa só. A verdade deve estar acima de tudo. O exemplo é a sua vida. Ele foi um guia, para mim e para minha família. Para minhas filhas (Volkov teve quatro filhas), que não são marxistas nem revolucionárias, ficou inculcado o princípio ético de respeito à verdade e à justiça."
E a religiosidade dos descendentes de Trotsky? Algum resquício do judaísmo?
"Trotsky era revolucionário marxista e, como ele mesmo declarava, um ateu irreconciliável. Não se abordam crenças ou temas religiosos, nem judaicos, nem católicos, nem de outras religiões em nosso meio familiar."
Ao falar sobre a expulsão que Stalin impôs ao seu avô, Volkov deixa transparecer certa mágoa familiar. Trotsky se viu "em um planeta sem visto diplomático". Sem ter para onde ir.
"Trotsky se considerava, durante a Revolução Russa de 1917 e depois, um bolchevique leninista. Lutava pela revolução socialista em escala mundial. O mundo capitalista nunca tomou para si as ideias de Trotsky. Pelo contrário, o considerava um perigo para sua estabilidade e sobrevivência. Tanto é assim, que, depois da sua expulsão da Rússia, de sair da Turquia, da França e da prisão domiciliar na Noruega, ele ficou neste planeta sem visto, até que o (presidente mexicano) Lázaro Cárdenas, no México, lhe deu asilo, em janeiro de 1937. Previamente, um pedido de asilo para (Franklin) Roosevelt (presidente americano) foi categoricamente rechaçado."
Era inevitável: ZH tinha de perguntar ao neto de Trotsky sua opinião a respeito dos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff - é bom lembrar que muitos integrantes do PT, das tendências mais radicais, se consideram trotskistas. Volkov foi evasivo. Trocou a análise pela manifestação de desejo:
"Quanto aos governos de Lula e Dilma, manifesto minha opinião de caráter pessoal, dos meus melhores desejos, de que consigam melhorar a educação, a saúde e as condições de vida do povo brasileiro e, sobretudo, que cuidem da selva amazônica, que é o único pulmão para proteger a humanidade do efeito invernadeiro que produz o capitalismo global depredador, que, em sua cobiça desmedida, destrói esse maravilhoso oásis."
E o dito "socialismo do Século 21", implementado por Hugo Chávez na Venezuela?
"Que coisa é esse socialismo do Século 21? Não acabei de entender o que significa. Não creio que os preceitos do marxismo tenham sofrido muitas mudanças (...). É importante a participação plena e ativa das bases, para que haja freio à burocratização."
O Leste Europeu viveu décadas de stalinismo. Neste trecho, toda a ácida crítica a tais sistemas, na voz do herdeiro de Trotsky:
"O sanguinário regime de Stálin, de totalitarismo burocrático, esteve totalmente afastado dos princípios e ideais do socialismo, superou o despotismo czarista. Trotsky caiu assassinado em 20 de agosto de 1940 para calar sua certeira e implacável denúncia e luta contra um regime surgido pela contrarrevolução realizada por Stalin (...). O legítimo regime stalinista se manteve com base em assassinatos em grande escala e falsificações históricas levadas ao extremo. Sempre se designou falsamente comunista, socialista e leninista, quando era o contrário. Provocou muita confusão na esquerda. Uma mentira que aproveitou e referendou a propaganda capitalista para criar mais confusão e tentar desprestigiar o marxismo e o ideal socialista."
A conversa com Esteban Volkov Bronstein tem um ponto alto, que se dá quando ele descreve em minúcias o assassinato do avô e, antes, um atentado do qual sobrevivera. Confira ao lado o relato do octogenário que mantém os mesmos traços marcantes e olhos azuis do avô - só sem os óculos redondos, o cavanhaque e a vasta cabeleira. Quando adolescente, ele viu o avô morrer - uma morte que marcou sua vida.
Testemunho sobre o assassinato do avô
"Em 24 de maio (de 1940), de madrugada, a casa foi tomada por stalinistas, providos de metralhadoras e bombas, dirigidos pelo pintor Alfaro Siqueiros. O quarto dos meus avós foi metralhado com 200 disparos de metralhadora Thompson, feitos a partir de três ângulos. A avó Natalia retirou meu avô da cama, ainda adormecido por ter tomado soníferos, e o empurrou para um local escuro, salvando a ambos. Eu dormia no quarto vizinho, no qual entraram pelo jardim, esvaziando uma carga de pistola na minha cama, a partir de uma porta, disparando contra o quarto dos meus avós. Então, me atirei ao chão e me encolhi no canto do meu quarto. Só recebi uma bala de raspão no polegar do pé direito. Ao se retirarem os agressores, ficou gravado em mim a imensa euforia que invadiu o meu avô por ter sobrevivido ao atentado. Mas ele sabia que só lhe haviam dado uma trégua. A pergunta era: quando e por onde viria o seguinte atentado? Em 20 de agosto, à tarde, regressando da escola após longa caminhada pela rua Viena, observei à distância que algo estranho ocorria. A porta da casa estava aberta, com policiais na frente, um carro estava mal estacionado. Angustiado, apressei o passo até a casa, entrando rapidamente na mesma. Então, topei com o chefe da segurança, Harold Robins, com o revólver na mão direita. "O que está ocorrendo? O que está ocorrendo?", eu lhe perguntei. "Jackson! Jackson!", foi a resposta. Não entendi. Caminhei por um corredor no jardim, até a biblioteca da casa. Em um canto do corredor, estava um indivíduo ensanguentado, subjugado por policiais, que gritava como um animal, que não reconheci e depois compreendi que era o assassino. Ao entrar na biblioteca pela porta entreaberta da cozinha, vi meu avô, ainda com vida, no chão, com a cabeça toda ensanguentada, cercado por Natalia, que aplicava gelo na ferida, com outros camaradas.
- Mantenham o menino longe, ele não deve ver essa cena - conseguiu dizer com dificuldades aos que o rodeavam.
Pouco antes, também havia dito aos camaradas que o imobilizavam:
- Não o matem, deixem-no falar!
O marido da camarada trotskista Sylvia Ageloff, próxima de nós, era agente da temível GPU (stalinista), infiltrado no entorno dos camaradas do avô, cuja confiança havia alcançado com pequenos favores. Mas não mostrava interesse em se aproximar de Trotsky e se mantinha distante da política. Até que, de forma inesperada, pediu que Trotsky revisasse um artigo que escreveu (...) Trotsky caiu na armadilha e permitiu que Jackson (na verdade, Ramón Mercader), entrasse nos seus aposentos..."