Foi quando completou 55 anos que a moradora de Não-Me-Toque Enice Mariani viu sua vida mudar completamente. E foi por conta de fatores que estavam além do seu controle, explica ela, que é uma das protagonistas de nosssa reportagem especial sobre novos rumos depois dos 50 (clique aqui para ler a íntegra). O ano de 2016 começou com o falecimento repentino de sua mãe, a quem era muito apegada. No segundo semestre, o mais novo de seus três filhos e o único que continuava morando com ela, saiu para fazer graduação em Santa Maria, deixando a mãe a lidar com os sentimentos confusos que vêm com o “ninho vazio”. Em novembro, um casamento de 28 anos e que já estava desgastado teve fim.
— Em menos de um ano tive várias perdas e uma virada de 180º naquilo que eu estava acostumada. Por isso, o ano seguinte foi de recuperação emocional, momento de trabalhar internamente essas questões. Depois, conforme comecei a me recuperar um pouco, percebi que já estava saturada de ficar em casa, aposentada. Pensava “poxa, esse não pode ser o resto da minha vida, eu quero dar um rumo diferente”. Quando você decide as coisas, parece que o universo conspira a favor — pondera Enice.
Já 2018 foi ano de virada, só que, desta vez, por escolha própria: ela tornou-se aluna do curso de Direito na Ulbra de Carazinho – um sonho antigo que dormia na gaveta à espera do momento em que ela viria buscá-lo. Hoje, aos 61 anos, ela cursa os semestres finais, elaborando um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que propõe um debate sobre os direitos previdenciários de pessoas transgênero.
O plano é que a faculdade contribua com a sua ocupação atual, na área da assessoria em planejamento previdenciário. Depois de mais de 30 anos como funcionária pública em Não-Me-Toque e alguns fora do mercado de trabalho, transformou parte da casa em escritório e fez uma parceria com uma amiga advogada para tocar o negócio.
— Uni o útil ao agradável, fui à luta e hoje estou quase me formando. Alguns até questionaram “meu Deus, você vai fazer faculdade depois de velha?”. Acharam muito estranho. E eu respondia que é para realizar um sonho e me manter ativa, já que não consigo me imaginar sentada, vendo a vida passar. Eu preciso ter objetivos, fazer coisas por mim. Até percebo que a capacidade de memorizar já está um pouco debilitada em função da idade, daí me dedico bem mais a estudar. Tenho tido um aproveitamento ótimo – provavelmente porque eu gosto bastante, sabe? E porque sou eu que pago, com meu dinheirinho suado — relata Enice.
Enice conta que há uma série de itens elencados na sua lista de desejos que ela não podia ou não via motivos para satisfazer antes, quando estava confortável em uma outra realidade. A primeira tatuagem foi um dos passos iniciais, com o desenho de uma mãe e um bebê, feita em 2019. É uma homenagem na pele para seus filhos. Também já deu check no item “comemorar os 60 anos na beira da praia de Copacabana”.
Entre os itens em compasso de espera estão o curso de inglês, o salto de parapente e um cruzeiro com a família pelo Brasil. Se tudo der certo, o passeio em alto mar será uma comemoração em dupla: a graduação em Direito da mãe e do filho caçula.
— Dar uma guinada na vida foi uma questão de sobrevivência emocional para mim e acabou que estou adorando essa fase. Não me vejo vivendo outra vida que não essa de agora. Ela faz muito mais sentido, estou em paz – conta Enice.