A Rádio Gaúcha encontrou a testemunha-chave que permitiu ao Ministério Público Estadual desarticular o esquema criminoso que fraudava o leite em Guaporé, na Serra gaúcha. O homem também participava do esquema, adulterando resultados e misturando produtos na LTV, empresa que transportava e resfriava leite antes de vender para a indústria. Ele fez um acordo de delação premiada com o Ministério Público para ter a pena reduzida em troca de divulgar tudo que sabia e dar os nomes dos envolvidos. A testemunha deu detalhes do esquema.
A primeira irregularidade ocorria logo após a coleta do leite junto ao produtor. “Eles transferiam o leite de caminhões menores para bitruques, caminhões com maior capacidade de carga. Aproximadamente 23 mil litros. Isso não é permitido. Somente quando passa por um posto de resfriamento e tem que sofrer o resfriamento e análise”, conta a testemunha.
A próxima etapa da fraude era a mistura de substâncias ao leite in natura para mascarar os testes exigidos pelo Ministério da Agricultura. Detalhe: o leite in natura não pode receber qualquer substância até chegar à indústria.
“Fazia o teste de Alizarol (teste feito para verificar a acidez do leite), caso necessitasse alguma coisa, tivesse fora dos padrões, eles adicionavam soda cáustica. Comprava soda em escamas, 99%, e diluía em 50% de água para fazer uma soda líquida”, explica o jovem.
Além da soda, era adicionada água para aumentar o volume e, consequentemente, o faturamento com a venda do leite fraudado.
“E eles adicionavam 200 a 300 litros de água em cada caminhão. Água com uréia. Então é necessário adicionar a uréia, que tem como componente o nitrogênio, que diminui o ponto de congelamento”.
A testemunha era responsável pelos testes feitos pela LTV no leite que chegava do produtor e também pelas misturas. Revela que de 12 análises exigidas por lei, apenas quatro eram feitas.
“Algumas análises são mais rápidas e outras são mais demoradas. Por exemplo, o teste da Redutase (método para estimar a quantidade de bactérias presentes no leite fresco) o mínimo permitido pelo Ministério da Agricultura, são 90 minutos. Até não se passar uma hora e meia, teoricamente, o caminhão não poderia ser liberado. Na LTV, o caminhão demorava no máximo 15 minutos quando tivesse algum problema. Resultados rápidos, ficava cinco minutos”.
Mesmo assim, se alguma dessas quatro análises apresentasse problema, a testemunha diz que resultado era modificado.
“Só que o boletim de análises não continha as informações corretas. Por exemplo, se o leite tivesse acidez fora dos padrões, no boletim de análise, ele passava a ser bom. Eventualmente uma que outra carga era condenada para não ficar uma coisa estranha ao Ministério da Agricultura”.
A testemunha revela a quantidade de leite que era adulterada na LTV.
“A recepção variou de 90 até uns 215 mil litros por dia. Esses 215 mil era leite que chegava das propriedades para a LTV. Na LTV, eram adicionados mais cinco, dez, 15 ou 20 mil litros de água com uréia, ou sal, ou qualquer outro produto químico que sanasse o problema do leite”.
O jovem conta ainda que o dono da LTV, Leandro Vincenzi, e o pai ele, Luis Vincenzi, diziam aos funcionários que esse era um procedimento corriqueiro no mercado.
“O Leandro e o pai dele diziam que se nós, LTV, não fizéssemos, as empresas que industrializavam, fariam isso. Então pra que deixar uma outra pessoa ganhar dinheiro, tirar proveito disso, se eles podiam tirar proveito”.
A fraude foi se tornando tão rentável que a LTV foi adicionando cada vez mais água no leite, segundo a testemunha.
“Com o passar do tempo foi se fazendo mais análise do leite e a LTV percebeu que o leite teria capacidade de receber mais água e as empresas aceitariam esse leite. Então, o Leandro quis que fosse aumentado o nível de água adicionada ao leite”.
A testemunha conta que existia até meta para utilização de água no leite por dia.
“Estipulou uma meta diária de 9 mil litros, mas isso chegou a 18 mil”.
A fraude chegou ao ponto que de cada 100 ml de leite, 10 ml era água e outras substâncias. Perguntado se voltaria a trabalhar na análise de laticínios, o jovem respondeu.
“Não. Eu aconselho eles (os que trabalham no ramo de laticínios) a parar. Porque hoje não depende da boa índole do transportador, do proprietário da empresa, nem do funcionário e nem do produtor, nem do fiscal e sim é uma cadeia. Se algum da cadeia falhar, todos correm riscos. Ficou uma área delicada, muito difícil de trabalhar”, desabafa a testemunha.
Envolvidos estão soltos
Os responsáveis pelo esquema criminoso em Guaporé Leandro Vincenzi, dono da LTV, o pai dele Luis Vincenzi, e a esposa de Leandro, Daiane Vincenzi, chegaram a ser presos no início de setembro, mas em razão de um habeas Corpus, estão soltos.
Além dessa testemunha que falou à reportagem, outras três aceitaram a proposta de delação premiada oferecida pelo Ministério Público. O promotor Mauro Rochemback, que é responsável pelas investigações, diz que os depoimentos foram imprescindíveis para desarticular o esquema criminoso.
“Foram depoimentos de extrema qualidade. Até porque são pessoas que trabalhavam na indústria e ao prestarem as informações admitiram participação nos crimes. E ao admitirem participação nos crimes, foram alertadas que estavam confessando a participação em crimes de uma organização criminosa e que seriam denunciadas. E nem assim recuaram e evitaram depoimento. Aceitaram a delação premiada de forma a esclarecer a verdade”, garante o promotor.
O advogado Jader Marques defende os réus Leandro, Luís e Daiane Vincenzi. Ele garante que nenhuma substância era adicionada ao leite transportado e resfriado pela LTV.
“No caso desses clientes, da Daiane, do Luís, e do Leandro, nós temos absoluta tranquilidade que provaremos a lisura dessas pessoas na condução da empresa, no trabalho que faziam e vamos mostrar que o que está havendo nesse caso é que o joio se misturou ao trigo”, sustenta o advogado.
Sobre os laudos constatando fraude no leite, Jader acrescenta.
“São meras divergências laboratoriais. São amostras com divergências nos resultados. Resultados que estamos contestando, porque são todos eles reprováveis do ponto de vista da legislação aplicável. Essas pessoas são inocentes e é preciso fazer uma releitura da operação da fraude do leite”.
Sobre a afirmação do Ministério Público de aumento de volume do leite para venda devido à adição de água com outras substâncias, Jader Marques também nega.
“Nós vamos provar isso na instrução de que não há comprovadamente aumento na quantidade de leite por adição de qualquer tipo de substância”, afirma o advogado.
O advogado dos responsáveis pela empresa LTV tenta transferir o processo para a Justiça Federal, já que as análises também são feitas por fiscais do Ministério da Agricultura.