Aidir Parizzi (*)
Nos anos 1990, uma das coisas que me surpreenderam em Moscou foi a presença maciça de chineses. Só na capital russa, eram mais de 50 mil pessoas vindas da terra de Mao, muitas delas estudantes com quem eu convivia no ambiente acadêmico. Chamou-me a atenção ver que os chineses não queriam ser como os russos, mas buscavam incansavelmente aprender o que eles sabiam.
Uma aliança entre países poderosos pressupõe balanço de poder, combinação de recursos naturais e científicos para fortalecimento mútuo e, quase sempre, um inimigo comum. A Rússia é um gigante territorial, com vastos recursos naturais, o maior arsenal nuclear do planeta e baixa densidade populacional. A China é uma superpotência industrial com extensa população, poder aquisitivo crescente e ambição de virar a maior economia mundial na próxima década.
Observe um mapa, ou melhor ainda, um globo terrestre. Os dois países abraçam vastas e ricas regiões da Ásia Central, como o Cazaquistão e a Mongólia. Se unirmos Rússia, China e a vizinha Índia – que desde o início da guerra na Ucrânia está usufruindo pragmaticamente de petróleo e gás natural russos a preços módicos –, estamos falando de cerca de 20% do território mundial e 40% da população do planeta. Não é à toa que Putin tem insistido na criação da Comunidade Econômica da Eurásia.
O antagonismo ao Ocidente, a sinergia de recursos naturais e tecnologia, além da ideia de que o protagonismo americano está em franca decadência, são agentes motivadores comuns. Sinais dessa tendência são as atuais transações comerciais entre Rússia e China, que cresceram significativamente após as sanções do Ocidente e acontecem em moedas locais, inclinando a balança de poder do dólar americano para outras moedas.
Há também uma ligação pessoal entre Xi Jinping e Vladimir Putin, com frequentes encontros e um relacionamento entre dois líderes autocráticos com múltiplos mandatos, caracterizado por ambos como uma sólida amizade. Militarmente, temos a China com forças mais convencionais e a Rússia com bolsões de tecnologia militar de ponta. Em 2018, os dois países deram uma impressionante demonstração de força conjunta, nas manobras militares conhecidas como Vostok.
O que impede, então, China e Rússia de selarem um acordo militar mais abrangente? Primeiramente, a disparidade entre as duas nações. A Rússia perdeu poder econômico e reduziu drasticamente os gastos com a defesa, o que a colocaria em uma posição desconfortável de parceiro menor, em aliança naturalmente chefiada por Pequim. A China, mesmo com objetivo traçado de US$ 200 bilhões de transações comerciais anuais com a Rússia, vende três vezes esse valor somente para os EUA, e não quer complicar sua imagem de parceria comercial com o Ocidente. Não se pode deixar de lado também o fato de que sentar no assento do passageiro não combina com a personalidade de Putin.
Os dois países têm ainda um histórico de adversidade geopolítica, com ameaças territoriais que, em 1969, levaram a uma disputa de fronteiras que beirou o conflito nuclear. Em 1979, a China invadiu o Vietnã, então aliado da União Soviética, e enviou ajuda aos mujahedins na luta contra tropas invasoras de Brezhnev no Afeganistão. No início dos anos 1990, Gorbachev tratou de amenizar a animosidade nas fronteiras e aumentar o comércio sino-soviético. Por outro lado, o extremo leste da Rússia, com baixíssima densidade populacional, arrisca ter sua soberania rapidamente ameaçada por uma eventual invasão étnica dos povos Han sobre as estratégicas regiões de Vladivostok e Khabarovsk.
Culturalmente, em especial para as novas gerações, o Ocidente parece levar vantagem. Atualmente, há 15 vezes mais estudantes chineses nos Estados Unidos do que na Rússia, o que pode estar criando maior afinidade com os americanos. Na economia, a China utilizou estratégias ocidentais de desenvolvimento desde o mandato de Deng Xiaoping, o arquiteto da China moderna, financiando um assombroso crescimento com capital ocidental sem com isso demonstrar qualquer intenção de deixar de ser um estado autoritário e centralizador.
A aliança entre Rússia e China é, acima de tudo, transacional, com muito mais forma do que conteúdo. Tanto Xi Jinping como Vladimir Putin parecem pesar constantemente riscos e benefícios de juntar forças em um escancarado antagonismo ao Ocidente, com plena consciência de que certos aliados podem, por vezes, ser mais perigosos do que os inimigos.
(*) Engenheiro, autor dos livros "Mar Incógnito" e "Embarque Imediato" (BesouroBox, 2022)