Faz quase um ano que a família Titkov deixou Irpin, cidade próxima de Kiev, para viver em Viena, na Áustria, longe da guerra. Além da luta para se integrar a um novo país, a ruptura é dolorosa e o coração continua na Ucrânia.
"Love home" ("amor em casa", em inglês) está escrito em uma parede. Comida abundante, um ambiente acolhedor: estes refugiados têm consciência de seus privilégios no momento em que seu país sofre com bombardeios, combates e cortes de eletricidade permanentes.
"Aqui temos tudo o que precisamos, para comer, um apartamento com calefação, a família reunida, nada de estresse", afirma Irina Titkova, a mãe de 39 anos.
- 'Cartão azul' -
A AFP acompanha há vários meses esta ex-professora de inglês em sua nova vida, ao lado de seus três filhos e seu marido Valerii, que conseguiu fugir da guerra por ser pai de uma família numerosa.
Todos partiram da Ucrânia no dia seguinte à invasão russa de 24 de fevereiro de 2022. O pai já conhecera os horrores da guerra em Nagorno Karabakh, entre Azerbaijão e Armênia, outro conflito pós-soviético. "Incapaz de matar um inseto", só tinha uma ideia em mente: colocar seus filhos em segurança.
Os Titkov foram rapidamente alojados por intermédio de conhecidos a dois passos da catedral de Santo Estêvão antes de encontrar um local próprio em um bairro residencial a cerca de meia hora do centro.
Com 9 milhões de habitantes, a Áustria recebeu cerca de 90.000 pessoas com um "cartão azul" reservado aos refugiados ucranianos que gozam de proteção especial dentro da União Europeia (UE).
Este status lhes dá direito a permanecer na Áustria até março de 2024 sem necessidade de pedir asilo, e a receber ajudas importantes, superiores às oferecidas aos migrantes procedentes de outros lugares.
- Dificuldades do idioma -
Uma família pode receber mais de 1.000 euros (pouco mais de 5.500 reais) para cobrir os gastos com comida e aluguel, explica Thomas Fussenegger, porta-voz da agência encarregada de apoio aos refugiados (BBU).
Também oferecem gratuitamente aulas de idioma, e graças a elas Irina e Valerii vão ao estabelecimento Deutschothek desde setembro para três aulas semanais.
Nas aulas, alunos e professores conversam em alemão rudimentar sobre a "propaganda" russa ou as últimas notícias do front.
Para o pai, um russófono de 43 anos, "é a parte mais difícil" da integração. "Estou cansado depois do trabalho e tenho dificuldade de me concentrar, fazer com que todas essas informações entrem na minha cabeça", diz.
Massagista e fisioterapeuta de profissão, Valerii foi contratado para trabalhar no armazém de uma rede americana de reformas e restauração. Se levanta ao amanhecer e não para desde então: trabalho, aulas de idiomas, atividades das crianças.
Não é "o trabalho dos sonhos", mas ele espera conseguir permissão nos próximos meses para exercer seu ofício. Tampouco descartou voltar a ser treinador de futebol, sua outra paixão abandonada com o exílio.
- 'A outra realidade' -
Diante da urgência, Irina acabou aceitando um emprego de caixa. Esgotada pelo ritmo intenso, acaba de pedir demissão e prefere trabalhar em uma loja de plantas medicinais. "É um lugar tranquilo, com 'karma' bom", sorri.
"Escolhi esta outra realidade, pressionei minha família a pensar no futuro" ao encontrar refúgio em um país seguro, acrescenta a ucraniana, que tenta aproveitar os museus e prazeres de Viena. Como esta primeira festa, que se permitiu frequentar no sábado com seu marido, convidados por seus novos amigos.
Entretanto, apesar de seus esforços, tudo remete à Ucrânia constantemente.
"Quero me convencer" de que tudo está bem, "que nos adaptamos", mas, na realidade, "cada dia tenho mais vontade de voltar ao meu país [...], cada dia é como se a minha alma tivesse ficado lá".
"Minha vida diária começa verificando a atualidade na rede Telegram: o que acontece em Kiev, Irpin e em outras cidades. E, certamente, quero saber dos meus familiares e amigos", conta, mostrando fotos de seu irmão com roupa militar. Após ser vítima de bullying, Denys, de 11 anos, mudou de turma e sente-se melhor, feliz por ter "mais amigos".
- Dupla escolaridade -
Além da escola austríaca, os filhos acompanham de forma paralela o programa ucraniano, uma dupla escolaridade difícil de atender as entre 500.000 e 700.000 crianças refugiadas na UE.
"A imensa maioria delas quer voltar após a vitória" e então é necessário manter o nível, explica à AFP Serhiy Horbachov, ombudsman da educação nacional.
A pandemia facilitou as coisas, diz. "Estávamos melhor preparados", mas ainda falta implementar "um sistema" para aliviar "o peso" para as famílias.
Ivanna Kobernyk, cofundadora da ONG Smart Education, afirma que se trata de uma situação excepcional. "É provavelmente a primeira vez que a Europa recebe refugiados cuja maioria sonha em voltar a seu país e continua estudando à distância. É a preservação de uma certa normalidade, de um vínculo com a pátria".
Para Irina, esse vínculo inabalável tem também um sentimento de culpa devastador. "Não sabemos como ajudar, além de enviar dinheiro", ressalta a senhora Titkova, que transfere centenas de euros regularmente a seus familiares, viajou para ajudar um tio doente de câncer e tenta convencer alguns a partir consigo.
Seu desejo para 2023: "que seja o último ano de guerra, para sempre".
E depois? "A Ucrânia estará em ruínas", distante do país moderno gravado em sua memória, "e vamos ter que começar de novo do zero", afirma Valerii, preocupado. "Como a vida vai ser depois? Não sei".
* AFP