O presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que vai anexar formalmente, nesta sexta-feira, 30, as quatro regiões da Ucrânia que passaram por referendos entre o fim da semana passada e o começo desta semana. Embora as votações tenham sido classificadas como "encenações" pelo Ocidente, o reconhecimento das províncias como parte do território russo amplia as possibilidades militares de Moscou na região, incluindo o uso de armas nucleares.
Putin agradeceu a participação popular nas votações realizadas em Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson em um pronunciamento nesta quinta-feira, 29, e disse que o Kremlin vai realizar uma cerimônia para a assinatura dos documentos formalizando a anexação dos territórios do leste da Ucrânia à Federação Russa na sexta-feira. Nas palavras de Putin, a Rússia quer "salvar" as populações dessas regiões.
O reconhecimento das quatro províncias por Moscou coloca em xeque a contraofensiva ucraniana que começava a retomar o controle dos territórios, após meses de ocupação russa. Uma vez que o Kremlin considerar as áreas como parte do país, qualquer ação militar ucraniana passará a ser vistA como um ataque à integridade territorial da Rússia, o que autorizaria as Forças Armadas do país a utilizarem seu arsenal atômico, seguindo a doutrina nuclear de Moscou.
Autoridades pró-Rússia realizaram referendos nas quatro províncias entre a sexta-feira da semana passada e a terça-feira desta semana, após as forças do Kremlin sofrerem uma série de reveses no campo de batalha que ameaçaram seu controle na região. De acordo com o resultado apresentado pelas autoridades, o "Sim" pela anexação à Rússia venceu com 97% dos votos totais.
Putin comemorou o resultado da votação em um discurso provocativo ao Ocidente, acrescentando que seu principal objetivo na guerra continua sendo "libertar" a região leste de Donbas da Ucrânia. Em contrapartida, relatos de coação durante a votação, incluindo ameaças de soldados armados com fuzis, surgiram do lado ucraniano da fronteira, reforçando as críticas do Ocidente à legitimidade do processo.
A estratégia foi comparada às votações realizadas pelos russos na Crimeia, em 2014, quando Moscou anexou a península ao território russo. No entanto, no contexto atual, a Rússia não controla totalmente nenhuma das quatro regiões, militar ou politicamente, a maioria dos moradores da província foram deslocados pela guerra e há muitos relatos de civis sendo forçados a votar sob a mira de armas ou outras formas de coerção.
Em Kherson, autoridades montaram um palco e trouxeram cantores junto da urna de votação para estimular a participação, disse Serhi, um aposentado que vive na cidade ocupada, que pediu para não se identificar por medo de represálias. "Muito, muito poucas pessoas estavam lá e votaram", disse ele ao The New York Times. Em outros lugares, ele disse, seus parentes foram visitados por soldados armados exigindo que eles votassem.
"É engraçado. Ninguém votou, mas os resultados estão disponíveis", riu Lyubomir Boyko, de 43 anos, morador de Golo Pristan, uma vila na província de Kherson ocupada pela Rússia. "Eles podem anunciar o que quiserem. Ninguém votou no referendo, exceto algumas pessoas que mudaram de lado. Eles foram de casa em casa, mas ninguém saiu", disse Boyko.
Relatos similares chegam de outras cidades. Em Melitopol, o prefeito Dmitro Orlov comentou as táticas de intimidação utilizadas durante a votação. "Eles batem forte na sua porta, tocam a campainha, dão uma cédula às pessoas e apontam com seus rifles onde colocar a marca", disse.
Promessas de Moscou
Em paralelo às táticas de intimidação, forças pró-Moscou fizeram uma campanha pró-referendo em toda a extensão dos territórios que devem ser anexados, com área comparável a de Portugal. Autoridades russas se comprometeram a oferecer passaportes, pagamentos de assistência social, remédios gratuitos e contas de telefone mais baratas.
Volodimir Saldo, um ucraniano que trocou de lado para se tornar o chefe da autoridade de ocupação na região de Kherson, disse que a votação foi tranquila e as pessoas estavam participando com "entusiasmo". Enquanto eles votavam, ele disse, "seus olhos estão queimando, brilhando, e isso mostra sua atitude em relação a este evento". Saldo disse na segunda-feira que votos suficientes foram dados a favor da adesão à Rússia. "Estou ansioso para ser libertado", afirmou.
Ameaças de resposta 'dura'
"A situação legal mudará radicalmente do ponto vista do direito internacional e isto também terá consequências sobre a segurança nestes territórios", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Dmitri Medvedev, o ex-presidente da Rússia que agora atua como vice-presidente do Conselho de Segurança do país, confirmou as consequências. "O Exército russo reforçará significativamente a defesa de todos os territórios (ucranianos) anexados à Rússia", prometeu ele no Telegram. "A Rússia tem o direito de usar armas atômicas, se necessário, em casos predefinidos, em estrita conformidade com os princípios da política governamental de dissuasão nuclear", acrescentou Medvedev.
Os ucranianos expressaram temor de que uma consequência imediata da anexação seja o recrutamento para as forças armadas russas e serem forçados a pegar em armas contra seu próprio país. Em partes de Luhansk e Donetsk, que estão ocupadas pela Rússia desde 2014, isso já acontece.
Os países do G-7 prometeram nunca reconhecer os resultados. O governo dos Estados Unidos citou uma resposta "rápida e severa" por meio de sanções econômicas adicionais às anexações, que devem acontecer de maneira rápida, como no caso da Crimeia em 2014.
O secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que a votação "era uma farsa, e ponto final". Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), pediu à comunidade internacional que intensifique o apoio à Ucrânia. "Os referendos falsos não têm legitimidade", escreveu ele no Twitter na semana passada.
A China, aliado importante da Rússia, não criticou abertamente os referendos, mas pediu o respeito à "integridade territorial de todos os países".
Fuga de russos
Com o anúncio, aumentaram temores de que Putin possa declarar lei marcial, o que levaria ao fechamento das fronteiras, impedindo a fuga da convocação de 300 mil civis determinada pelo Kremlin na semana passada. A primeira convocação de reservistas já impulsionou um êxodo de homens russos em idade de combate, com congestionamentos cada vez maiores nas passagens de fronteira russa, que causaram enormes filas de carros. (Com agências internacionais).