A primeira semana do governo de esquerda de Gabriel Boric teve alguns contratempos no Chile, principalmente com a tentativa de diálogo empreendida pela chefe de gabinete em uma área mapuche onde foi recebida a tiros, um choque de realidade diante das altas expectativas.
Quatro dias depois de assumir o cargo, Boric enviou Izkia Siches, a primeira ministra do Interior da história do Chile, à região de Araucanía (sul), área em tensão devido a ataques atribuídos a grupos indígenas radicais que reivindicam terras e que denunciam a operação de organizações paramilitares e da polícia.
A caminho da comunidade de Temucuicui, 600 km ao sul de Santiago, onde Siches planejava se encontrar com o pai de um indígena morto a tiros pela polícia em 2018, a comitiva foi emboscada.
Um carro em chamas bloqueou a passagem e tiros foram ouvidos. O comboio teve que recuar rapidamente, frustrando a entrada da segunda autoridade do país em uma área que impõe suas próprias leis.
Grande parte das comunidades mapuches se encontra na região da Araucanía, reivindicando a restituição de terras que consideram suas por direito ancestral e que hoje estão nas mãos de empresas florestais.
A viagem frustrada, no entanto, ajudou a revelar a magnitude do que está acontecendo na região, situação agravada nos últimos anos pelo abandono de algumas áreas pelo Estado.
"Os eufemismos e as histórias acabaram. Agora estão na realidade bruta, e a realidade bruta é que há lugares no Chile onde a autoridade do Estado não pode entrar, porque tem que pedir permissão", comentou à AFP a analista e fundadora da Latinobarómetro Marta Lagos.
Em outro contratempo de seus primeiros dias no governo, o presidente Boric entrou em atrito com a coroa espanhola ao acusar o rei Felipe VI de atrasar a cerimônia de posse - reclamação negada pela casa real - e expressou seu aborrecimento com a Igreja Católica pela presença em uma cerimônia oficial de dois cardeais acusados de encobrir abusos sexuais de menores.
- Necessidade de crescer -
A situação em Araucanía é um dos principais conflitos que Boric terá que enfrentar, juntamente com a implementação de uma reforma tributária para ampliar os benefícios sociais e a crise migratória que existe na fronteira norte do país, além de apoiar o crescimento da população local.
"Hoje estamos avançando com o acordo de Escazú; amanhã o faremos no reencontro entre os que habitam nossos territórios, por pensões dignas, saúde de qualidade, pela erradicação da violência de gênero", disse o presidente ao assinar, nesta sexta-feira, a adesão do Chile ao acordo ambiental de Escazú, que havia sido rejeitado pelo governo anterior e ainda deve ser aprovado pelo Congresso.
Boric carrega a esperança de milhares de chilenos de construir um país mais igualitário com base em um sistema social mais robusto, promessa que precisa ser financiada com uma reforma tributária e crescimento econômico.
Seu gabinete é formado por mais mulheres do que homens, com grande diversidade na origem de seus membros.
"Um país precisa crescer e até agora a proposta econômica da Frente Ampla (da qual Boric faz parte) tem se concentrado em outros aspectos", alertou o cientista político Cristóbal Bellolio no dia da posse, em 11 de março.
"Em países como o Chile, que ainda são relativamente pobres, não basta redistribuir, é preciso crescer se quiser aumentar o bolo para poder redistribuir", disse à AFP.
O Chile encerrou 2021 com uma expansão histórica de 11,7%, sustentada pelo alto preço do cobre, o aumento do consumo impulsionado pela ajuda estatal do conservador Sebastián Piñera para lidar com a pandemia e os três saques antecipados de fundos de pensão aprovados pelo Congresso em meio a grande pressão social.
O governo de Boric alertou que revisará para baixo as projeções de crescimento para 2022 e o percentual de arrecadação da reforma tributária que passaria de 5 pontos do PIB para 4.
* AFP