Fabiano P. Mielniczuk
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFRGS
No dia 17 de dezembro de 2021, o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa propôs um tratado bilateral de garantias de segurança mútua aos EUA. Em seu preâmbulo, os russos são bastante assertivos ao afirmar que o conflito entre os dois países pode resultar em uma guerra nuclear, a qual “não pode ser vencida e nunca deve ser lutada”.
Para os menos familiarizados com política internacional, o tom é ameaçador. Afinal, em uma guerra na qual não há vencedores, todos perdem. No caso específico, por serem os donos dos maiores arsenais nucleares do planeta, os perdedores arrastariam para a derrota a humanidade, posto que uma guerra nuclear entre Rússia e Estados Unidos tem o potencial de aniquilar a vida na Terra. Sugiro ao leitor que procure pela expressão “inverno nuclear” na internet e tire suas conclusões.
Já para os analistas experientes a retórica russa é mais do mesmo. Serve como recurso para pintar com cores fortes o estágio atual da relação entre os dois países, cumprindo a função de preparar o terreno para que os americanos aceitem as propostas russas. Essas visam, acima de tudo, atender a seus interesses de segurança. Por essa lógica, durante a Guerra Fria o mundo conviveu com a possibilidade de uma guerra nuclear e ela nunca ocorreu. Não seria agora, anos após a queda do Muro de Berlim, que se concretizaria.
A proposta russa contém oito artigos, compreendidos entre os extremos do possível ao impossível. Entre o que é possível está o Art.2º, que indica a necessidade de os dois países e as organizações de segurança às quais fazem parte aderirem aos princípios das Nações Unidas. Em termos vagos, a proposta é de fácil aceitação. Entre o que é impossível, por exemplo, está o Art.7º, que preconiza a proibição de que ambos tenham armas nucleares fora de seus territórios. Pedido inaceitável para os EUA, uma vez que Uhá em torno de cem ogivas nucleares de sua propriedade espalhadas entre Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia, aliados na Otan, e que constituem o pilar de sustentação da presença militar americana na Europa. Ao tornar explícita uma demanda que não será atendida, Moscou quer deslocar as demais do pólo do impossível para o do possível.
A principal delas diz respeito à Ucrânia. Trata-se do Art. 4º, o qual impõe aos EUA a obrigação de negar o acesso de ex-repúblicas da União Soviética à Otan. Até antes da crise atual, essa possibilidade envolvendo a Ucrânia estava descartada, pois a Otan se comprometera, na Cúpula de Bucareste, em 2008, que o país seria membro da aliança no futuro. Porém, esse compromisso também foi assumido em relação à Geórgia, e hoje o ingresso desse país na aliança está fora de questão. Por quê? Meses após o encontro na Romênia, a Rússia invadiu a Geórgia em uma guerra relâmpago. Desde então, os russos ocupam quase 20% do território georgiano, e as conversas sobre a adesão à Otan arrefeceram. Hoje, com mais de 100 mil soldados russos concentrados nas fronteiras da Ucrânia, quem garante que o feito georgiano não será repetido no país?
Os motivos que justificariam uma invasão russa ao território ucraniano são mais fortes em comparação aos que motivaram a intervenção na Geórgia. Para além de questões geopolíticas, a Ucrânia possui uma vasta minoria russa (quase 18%, ou quase 9 milhões de habitantes no começo dos anos 2000), e, mesmo entre os ucranianos, os russos são vistos como um povo próximo por conta de suas origens comuns. A exceção ocorre no oeste do país, região conhecida pela presença mais atuante de grupos nacionalistas ucranianos.
A estratégia da Europa de insuflar a população ucraniana contra o ex-presidente Yanukovitch após este optar por um acordo comercial com a Rússia e não com a União Europeia ensejou os acontecimentos da Euromaidan a partir de 2013. O movimento se definia muito mais a favor da Europa do que contra os russos. Porém, em um curto espaço de tempo, após a deposição do presidente “pró-Rússia”, tanto os EUA quanto seus aliados europeus empoderaram grupos nacionalistas que, no governo, reforçaram a retórica antirrussa. Após a anexação da Crimeia e um ano de guerra separatista no Leste, vieram os acordos de Minsk, negociados entre Ucrânia, Rússia, França e Alemanha, que previam uma reforma constitucional para conferir maior autonomia às regiões russas do país. Mas tais acordos nunca foram implementados. Como aceitar os russos na Ucrânia, se o discurso do governo ucraniano passou a ser antirrusso? O conflito no Leste se arrasta há anos e, se a Ucrânia entrar na Otan, Moscou ficará totalmente impotente para agir caso a situação dos russos no país piore.
Ao olhar para a Ucrânia, confesso que o receio supera o ceticismo, e o pessimismo sobre a situação atual se impõe. Não que uma guerra nuclear esteja no horizonte. Pelo contrário: os americanos e a Otan deixaram claro que um ataque russo à Ucrânia não seria respondido diretamente pelo uso da força, uma vez que a Ucrânia não faz parte da aliança. Todavia, os países da Otan já reforçam suas posições na Europa, e a ajuda militar à Ucrânia se intensificou nos últimos dias. Isso, por sua vez, pode servir de estímulo para antecipar um ataque da Rússia. Ao considerar os interesses dos EUA, da Rússia, da Ucrânia, da Otan e dos países da UE, fico só com uma certeza: se o interesse das pessoas fosse levado em conta, nenhuma guerra seria vencida e, por isso, jamais seria lutada.