Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estado de contaminação da covid-19 à pandemia. Desde então, nossas vidas mudaram, a máscara passou a ser kit de sobrevivência e ninguém nunca mais entrou em um supermercado com a mesma tranquilidade do dia anterior. Após 19 meses, 4,8 milhões de pessoas morreram em decorrência do coronavírus e 235 milhões foram infectadas, segundo a Universidade Johns Hopkins.
Com 6 bilhões de doses de vacinas já aplicadas, conforme a mesma instituição, no entanto, a luz no fim do túnel, que já pareceu distante, começa a brilhar em alguns países. Nesses lugares, a maior tragédia de saúde pública que a humanidade vivenciou em um século começa a virar passado.
Mas quando a pandemia irá acabar? No dia em que a mesma entidade que a declarou, a OMS, vir a público anunciar que ela está controlada. Segundo a organização, quando a propagação mundial de uma doença é contida em determinadas regiões, não é mais considerada uma pandemia, mas uma epidemia. Se a covid-19 persistir em níveis “esperados ou normais”, a OMS a classificará segundo o status sob o qual vivíamos em 10 de março de 2020: uma “emergência de saúde pública com preocupação internacional”.
Um comitê internacional se reúne a cada três meses para avaliar a situação. Em 10 de agosto de 2010, por exemplo, a OMS declarou o fim da pandemia de H1N1. O anúncio foi feito com pompa e circunstância, em Genebra, pela então diretora-geral da entidade Margaret Chan. Surgida em 2009, no México, a doença matou mais de 18 mil pessoas.
– O fim da pandemia não significa o fim do vírus – alertou ela, à época.
Uma das mais mortais pandemias da história, a gripe espanhola matou entre 40 milhões e 50 milhões em 1918. À época, a OMS, não existia. Só foi criada em 1948, no âmbito das Nações Unidas. No pós-I Guerra, o “fim” da pandemia esteve mais relacionado com uma sensação coletiva do que com a declaração oficial e pública de um órgão.
– Nenhum de nós estará seguro até que todos estejamos seguros – repete Tedros Adhanom Ghebreyesus, o atual diretor-geral da OMS.
Apenas duas doenças na história registrada já foram exterminadas: a varíola, cujo último caso foi anotado em 1978, no Reino Unido, e a peste bovina, notificada pela última vez em 2001, no Quênia. Outrora terríveis bactérias e vírus, como os que causaram a peste bubônica e pneumônica, ou mesmo o que provocou a gripe espanhola, continuam entre nós – o que também não significa que não surjam outros.
O sucesso da vacinação devolveu a esperança no combate à pandemia. Há um retorno à normalidade possível
FILIPE FROES
Pneumologista, consultor do governo português para a contenção da pandemia
Quando o Sars-Cov-2 for rebaixado de pandemia para “emergência de saúde pública com preocupação internacional”, estará ainda circulante, mas provocará menos consequências, pois, como humanidade, teremos desenvolvido imunidade. Ou seja, dificilmente o coronavírus será erradicado.
Para que dobremos essa esquina tenebrosa da história, a vacina é fundamental. Países e territórios nos quais mais de 70% da população está imunizada podem dizer, ainda que com cautela, que estão o mais próximos de dar esse passo.
Portugal, onde mais de 85% da população está completamente imunizada, é o que chega mais perto de uma possível volta à vida normal: iniciou a terceira fase do desconfinamento geral com mais de uma semana de antecedência do previsto. Apresenta hoje uma trajetória descendente de taxas de incidência de infecções – 140 casos por 100 mil habitantes) e transmissão abaixo de 1 (0,81).
– Ainda não é o momento de liberação total. Desaparecendo a generalidade das limitações impostas pela lei, passamos a uma nova fase assentada essencialmente na responsabilidade individual. Não podemos esquecer que a pandemia não acabou e que, embora se possa considerar controlada a partir do momento em que 85% da população se encontre vacinada, o risco permanece – disse Antonio Costa, primeiro-ministro português.
É a fase em que todos os cidadãos têm um dever individual para conter a propagação do vírus.
– O sucesso da vacinação devolveu a esperança no combate à pandemia. Há um retorno à normalidade possível – avalia, em entrevista a ZH, o pneumologista Filipe Froes, consultor da Direção Geral de Saúde (DGS), que coordena as operações de contenção da doença em Portugal.
Em 13 de setembro, a DGS liberou o uso de máscaras em locais públicos após 318 dias de obrigatoriedade. Mas mantém recomendação do uso opcional ao ar livre em situações especiais, “nomeadamente aglomerados previsíveis ou potenciais de pessoas, contextos específicos e situações clínicas particulares”. É o caso do transporte coletivo e no interior de órgãos públicos, supermercados, centros comerciais, lojas, cabelereiros e restaurantes. Nas escolas, o uso é compulsório para educadores e alunos a partir de 10 anos. No momento, a meta do governo é completar o ciclo de imunização nos adolescentes. O país tem 3 milhões de doses estocadas.
Após início da campanha um tanto desorganizada, Portugal estruturou a estratégia que a tornou referência mundial. Parte do sucesso se deve ao comando na campanha do coordenador das forças armadas, Henrique Gouveia e Melo.
– Em menos de um ano e meio, perdemos 18 mil pessoas. Se isso não é um combate, o que seria um combate? – disse ele à CNN.
Lojas e restaurantes do país estão abertos, e os turistas, de volta. A reabertura inclui o retorno de voos inclusive do Brasil, de onde o ingresso no país é permitido mediante apresentação de teste PCR negativo realizado 72 horas antes do embarque ou apresentação de certificado digital de vacinação.
Nessa terceira e última etapa do plano de desconfinamento, discotecas e bares reabrirão. Mas, para ingresso, é exigido certificado digital de vacinação completa ou teste negativo para covid-19.
As comprovações não serão mais exigidas em estabelecimentos turísticos, como hotéis, aluguéis por temporada e aulas em grupo nas academias. Mas continuam obrigatórias em viagens aéreas e terrestres, visitas a lares de idosos, hospitais, grandes eventos culturais, esportivos e corporativos. Caem também limites de horários e de lotação nas mesas em locais internos de restaurantes e cafés. Também não haverá mais restrições do número de pessoas em atividades do comércio, eventos culturais, esportivos e religiosos em locais públicos, como cinemas, teatros, casamentos e batizados. A própria DGS foi extinta. No caso de eventos públicos, como partidas de futebol, está liberada ocupação de 100% dos assentos, desde que as pessoas apresentem certificado de vacinação e mantenham o uso de máscaras.
Já os Emirados Árabes Unidos, segundo país do mundo no ranking da imunização completa, suspenderam a exigência do uso de máscara em locais públicos, mas o distanciamento social de dois metros deve ser mantido. Também não é mais necessário utilizar o equipamento durante a prática de exercícios físicos ao ar livre e em praias e piscinas. A decisão ocorre no momento em que Dubai sedia a Expo 2020, aberta no dia 2. Trata-se do maior evento mundial desde o início da pandemia. Todos os adultos que comparecem devem apresentar teste de covid-19 negativo.
A alta taxa de vacinação (83% com as duas doses) resultou em uma desaceleração significativa dos casos, com a taxa diária caindo 60% em comparação agosto de 2020. As autoridades instalaram placas nas áreas nas quais as máscaras podem ser removidas. Em locais públicos onde o equipamento ainda é exigido, quem desrespeitar a ordem é multado.
No Uruguai, fiquei muito contente com o tratamento que recebi. Tomei a primeira dose em abril, a segunda no início de maio e a terceira no início de setembro. Tenho mais de 65 anos, e todos tivemos um calendário muito bom
ANA BELTRAME
Cônsul do Brasil em Rivera
Mais perto de nós, a vida também começa a voltar ao normal. No Uruguai, com 74% da população completamente vacinada, o Ministério de Saúde Pública declarou, no último dia 28, novo protocolo para eventos e festas, permitindo a ampliação do limite de 50% para 75% da capacidade dos locais, desde que a entrada seja permitida apenas para quem tem o ciclo vacinal completo. A capacidade máxima para eventos em áreas fechadas subiu para 600 pessoas e 800 para as abertas. Durante festas, são necessárias pausas de 20 minutos para ventilação a cada 50 minutos. Outra novidade é que será exigida presença de medidores de CO2 nos eventos. O país reabrirá as fronteiras para vacinados com as duas doses a partir de 1º de novembro. Serão aceitos viajantes que tenham recebido qualquer vacina reconhecida pela OMS e um teste de PCR negativo feito 72 horas antes do embarque.
– Acho que a situação aqui está boa, mas isso não quer dizer que as pessoas tenham de retirar a máscara. No Uruguai, fiquei muito contente com o tratamento que recebi. Tomei a primeira dose em abril, a segunda dose no início de maio e a terceira no início de setembro. Tenho mais de 65 anos, e todos tivemos um calendário muito bom. Com isso, a pandemia arrefeceu muito aqui – conta a cônsul-geral do Brasil em Rivera, no Uruguai, Ana Beltrame.
Uma das evidências de que a covid-19 começa a virar passado é a construção do primeiro monumento no mundo para homenagear as vítimas. Ficará na rambla de Montevidéu, junto ao Rio da Prata.
– Esse espaço é um local de reflexão. Embora o monumento seja fruto da vivência dessa pandemia, seu propósito é construir uma consciência coletiva que nos lembre que o homem não é o centro do ecossistema em que vive, mas que estamos subordinados à natureza – diz o arquiteto Martín Gómez Platero.
Já o Chile reabriu fronteiras para brasileiros em 1º de outubro. Mas a entrada exige protocolos rígidos: é necessário apresentar comprovante das duas doses de vacina ou dose única da Janssen, teste de PCR negativo feito 72 horas antes da chegada e cumprir quarentena de no mínimo cinco dias em residência particular ou hotel. Nesse período, o viajante é submetido a exames e terá de fazer relatórios diários de saúde.
O país encerrou o estado de emergência e declarou o fim do toque de recolher obrigatório durante a madrugada. Mesmo que quarentenas regionais ou comunitárias estejam descartadas no momento, autoridades manterão o isolamento de casos positivos ou suspeitos. O limite de pessoas em estabelecimentos também pode variar regionalmente.
Um laboratório desse novo momento é Magallanes, primeira região do país a avançar para o chamado nível de “Abertura Avançada”, de maior relaxamento das medidas de restrição. No extremo sul do país, onde fica Punta Arenas, pela primeira vez em 18 meses há baixa incidência de casos, alta taxa de vacinação e baixa ocupação de leitos de UTI.
– Trata-se de um efeito que se mantém de modo sustentável – disse o subsecretário de Redes Assistenciais, Alberto Dougnac ao Emol.
Nessa fase, não há restrições de nenhum tipo, desde que as pessoas apresentem seu Pase de Movilidad, espécie de passaporte vacinal.
Em alguns lugares, a conclusão das autoridades de saúde é de que seria impossível uma realidade de “covid zero”, ou seja, sem a circulação do vírus. Após pressão pela reabertura do país, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, anunciou na última segunda-feira que as restrições impostas contra a covid serão gradualmente relaxadas.
Ela apresentou mapa em três estágios para a reabertura.
O país está entre os poucos que reduziram os casos de transmissão comunitária a zero, um feito conquistado principalmente através do rastreamento de contatos, imposição de quarentena e fechamento de fronteiras. Hoje, soma 4.382 casos e 27 mortes.
– A Nova Zelândia sempre teve controle facilitado pelo fato de ser uma ilha: você bloqueia o mais importante em doenças pandêmicas respiratórias, a comunicação e o transporte, e em uma ilha fica mais fácil de controlar a partir do momento em que se isolam os aeroportos e voos – explica Alexandre Vargas Schwartzbold, médico, professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e presidente da Sociedade Rio-grandense de Infectologia (SRGI).
Mas, mesmo após sete semanas de quarentena, casos de variante Delta não conseguiram ser controlados na Nova Zelândia, fazendo com que milhares de pessoas se revoltassem com o governo, que passou a analisar outras possibilidades. O plano de “covid zero”, teve sucesso – o país chegou a ficar seis meses sem mortes por covid-19 –, mas só até 4 de setembro, quando uma mulher de 90 anos com comorbidades sucumbiu ao vírus. O plano, agora, é conviver com o coronavírus, controlando o número de casos e apostando, cada vez mais, na vacinação.
As quarentenas terão fim quando 90% da população elegível estiver vacinada na Nova Zelândia (hoje cerca de 42% da população está nessa condição). Os residentes de Auckland pela primeira vez desde agosto terão permissão para se encontrar com membros de outras famílias ao ar livre. As crianças mais novas retornarão às salas de aula e haverá uma abordagem mais permissiva aos exercícios ao ar livre nos parques e praias.
Singapura também mudou para o que chama de “viver com o vírus”, usando métricas como hospitalizações e mortes em vez de número de casos para orientar a reabertura, agora que vacinou 76% da população. A mudança de estratégia daquele país e de outros na região deixou a China como talvez a última grande nação a buscar uma abordagem de “zero covid”. O gigante asiático, segundo estima o pneumologista Zhong Nanshan, terá “80% ou 85% da população” vacinada até o fim de 2021, porcentagem que considera adequada para a completa reabertura (hoje a China tem 72,56%).
No último dia 24, Nova Zelândia, Suíça, República Tcheca e Omã passaram a integrar o grupo de países que possuem o selo “Safe Travels” do World Travel and Tourism Council (WTTC), uma certificação reconhecida como um símbolo global de segurança usado para reconstruir a confiança do consumidor e encorajar o retorno de viagens internacionais seguras. Isso significa que o país mantém padrão de protocolos de saúde e segurança exemplares. Já haviam recebido esse selo Trinidad e Tobago, Madagascar, Samoa e Ilhas Reunión.
Os rankings oficiais não espelham uma realidade mais ampla. Na proporção de novos casos de covid-19 para 1 milhão de habitantes, há países que, nos últimos sete dias, não registraram nenhum. São exemplos Polinésia Francesa, República Centro-Africana, Serra Leoa, China e Chade. Mas essas nações ou são ilhas isoladas, ou territórios em conflito, com dificuldade de contabilidade dos dados, ou onde falta transparência. No restante dos 10 países com menos incidência do vírus, os mesmos problemas estatísticos aparecem. Níger apresentou nos últimos sete dias apenas dois casos por milhão de habitantes. Butão, Libéria e Sudão, três. A exceção é Taiwan, cujos dados são confiáveis, e que contabilizou apenas três casos até quarta-feira.
O Brasil (540 novos casos por milhão de habitantes) é o 116º entre 206 países, à frente de Groelândia (545), Líbano (547) e Vietnã (574) e atrás de Azerbaijão (533), Saint Martin (532) e Austrália (522).
Com relação à vacinação, a OMS estabeleceu meta de que pelo menos 10% da população de cada país fosse vacinada até setembro, com a intenção de que, até dezembro, se chegasse aos 40%. Porém, mais de 50 países não atingiram a meta. A maioria dos que estão atrasados situa-se na África, continente que, como um todo, está ainda na faixa de 4% da imunização total. A média da Europa já passa dos 50%. Benin, República Democrática do Congo, Chade, Guiné-Bissau e Etiópia, entre outros, não chegaram nem a 1% da população imunizada.
O professor Schwartzbold lembra a frase do terceiro presidente dos EUA (1801-1809), Thomas Jefferson, principal autor da Declaração de Independência dos Estados Unidos, para falar do mundo pós-covid, que muitas pessoas começam a vivenciar:
– Dá para falar de volta à normalidade. Mas o preço da liberdade é a eterna vigilância. É vigilância epidemiológica e genômica. É fundamental que esses países, e a gente espera que o Brasil esteja nessa situação no próximo ano, mantenham vigilância de variantes e de novos casos. Diante de um vírus como esse, a gente não pode falar em fim; a gente vai falar em controle permanente em níveis bem baixos, como teríamos com outros vírus em níveis sazonais. Ao mesmo tempo, precisamos lembrar que esse vírus tem reservatório animal e capacidade de mutação e, sendo respiratório, estará circulando. Mas espero que seja de tão pequena circulação que não impacte em nível epidêmico.