Por Ricardo Seitenfus
Autor de várias obras sobre o Haiti, foi Representante Especial da SG/OEA em Porto Príncipe (2009-2011)
Há diversas maneiras de abordar a multifacetada crise haitiana. Apesar das diferentes perspectivas, diagnósticos e conclusões, uma impressão comum emerge. Não sabemos o que fazer. Estamos perdidos, confusos.
Com seus 35 anos de transição de um regime de exceção para a democracia representativa e mais de US$ 30 bilhões gastos em nome do Haiti, o país bate todos os recordes e se torna o indiscutível campeão do fracasso. E notem que enfrentou, nessa disputa, concorrentes de porte: os regimes militares latino-americanos, o franquismo, o salazarismo, os coronéis gregos, o comunismo do Leste Europeu.
Deve-se entender que a instabilidade política, da qual as crises são apenas a consequência mais visível, constitui um modo próprio de existência do país e a norma entre os atores políticos. A crise é um sistema. E, como em qualquer sistema político, a mudança provoca forte resistência. Principalmente porque há quem ganhe com ela, e os demais devem a própria existência à crise.
A instabilidade política permanente é o elemento central e a norma fundadora de um sistema político cuja situação de crise faz parte do modus vivendi. Esse sistema resiste a qualquer tentativa de modificação ou adaptação.
A solução passa necessariamente pelo exercício do poder, e essa lógica é o combustível da própria crise. A característica definidora desse sistema reside no fato de que qualquer um dos atores só encontra soluções ligadas à ideia de eliminar, evitar, proibir, bloquear e destruir as forças percebidas como suas oponentes. Essa cultura política exclui a possibilidade de explorar, analisar, incorporar, gerar, mediar, planejar e construir significantes e sentidos comuns. Portanto, a solução de poder praticada no Haiti constitui a antítese dos princípios que regem o sistema democrático.
A primazia do político no sentido de sua representação institucional e não como instrumento de mediação de conflitos é o elemento central do dilema haitiano.
A Constituição de 1987 resulta em um modelo híbrido. Obcecados com uma suposta “maldição do Palácio Nacional” segundo a qual mesmo os Chefes de Estado eleitos democraticamente se transformam em autocratas, os constituintes amarram as mãos do presidente, fazendo com que o primeiro-ministro (e seu governo) só possa aceder às suas funções com o beneplácito parlamentar. Assim, o presidente propõe e o parlamento dispõe, e o Executivo é bicéfalo.
Consequentemente, em vez de ter uma função própria nos sistemas políticos modernos, nomeadamente a de pôr fim à instabilidade, o voto torna-se um elemento adicional e inevitável – porque é legítimo e constitucional – das crises.
A reivindicação democrática, em termos da retórica latino-americana clássica em torno de questões como os pobres e a justiça social, é acompanhada por uma reivindicação igualmente retórica sobre a cidadania e as instituições eleitorais. Notemos, por parte dos principais atores, a ausência de um discurso capaz de fazer a ligação entre os campos da democracia e da segurança e os da economia e do social. Poucos esforços são feitos com o objetivo de construir uma visão comum. Por exemplo, a ausência de um Estado funcional com suas instituições, suas regras do jogo, seu aparato de força e sua transparência, controle e eficiência.
De todas as experiências recentes de transição da ditadura para a democracia, a longa, caótica e inacabada transição haitiana é a única que não firmou um Pacto de Liberdades e Garantias Democráticas, garantido pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CS/ONU). Todos os exemplos de transição apontam nessa direção. Ou seja, é necessário, por um lado, que os atores políticos concordem em cicatrizar as feridas do passado (leis de anistia, perdão, concórdia e conciliação) e, por outro, que estabeleçam princípios sobre a disputa pelo poder no futuro (multipartidarismo, liberdade de imprensa, alternância no poder, respeito aos direitos humanos e liberdades individuais, instituições sólidas e reconhecidas).
Apesar das imensas necessidades de todos os tipos, é a política que constitui o núcleo duro do dilema haitiano. Na ausência de um modus vivendi aceitável e de regras do jogo obrigatórias para todos, não há salvação. Enquanto perdurarem visões parciais que levam a soluções de poder, a crise pode ter uma trégua, nunca uma solução.