O maior contingente militar das Nações Unidas tem novo comandante - e ele é brasileiro. No próximo dia 12 o General de Divisão Ricardo Augusto Ferreira Costa Neves assume o posto de comandante em chefe (Force Commander) da Missão de Estabilização da ONU na República Democrática do Congo (Monusco). Ele vai liderar, lá, mais de 15 mil militares de 45 nações diferentes. Desses, 660 são observadores e os demais, combatentes.
Sim, diferentemente de outras missões, os soldados da ONU que atuam no Congo têm permissão para devolver agressões e defender a vida de terceiros. É a chamada ação de IMPOSIÇÃO de paz - mais do que pedir, eles exigem que os grupos armados se desmobilizem. E não são pequenos os desafios. A estimativa é que existam mais de 45 bandos guerrilheiros com atuação em território congolês. Alguns são quadrilhas que se dedicam à extorsão de empresas mineradoras, outros professam variadas ideologias.
Um dos antecessores de Costa Neves, o também general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz, teve o helicóptero alvejado no Congo e precisou fazer um pouso forçado. A Monusco perdeu na época dele sete militares. Foram 60 "capacetes azuis" mortos em território congolês desde agosto de 1999, quando a missão foi criada.
Santos Cruz, que liderou 23 mil militares da ONU no Congo entre 2013 e 2015, foi um dos mentores da ideia de devolver os golpes recebidos. Com apoio do Exército congolês, as tropas das Nações Unidas entraram em combate e causaram mais de 400 baixas (mortos ou feridos) na guerrilha, durante o cerco guerrilheiro à cidade de Goma.
Costa Neves é o terceiro general brasileiro a atuar na Monusco. Ele sucederá, agora, Elias Rodrigues Martins Filho, que está lá desde maio de 2018.
Costa Neves não é um novato em termos de Nações Unidas. Serviu como Observador Militar na Missão de Verificação da ONU (Unavem) em Angola de 1995 a 1996, durante a guerra civil naquele país (que durou até 2002). É um homem que mescla ação e erudição. Foi comandante da 17ª Brigada de Infantaria de Selva (2015-2017) e comandante do 62º Batalhão de Infantaria (2008-2010), além da mais prestigiada unidade de ensino das Forças Armadas, a Academia Militar das Agulhas Negras.
O general, nascido em Olímpia (SP), tem curso básico de Paraquedista, de Mestre de Salto, Curso Especial de Política e Estratégia na Escola Superior de Guerra (ESG), curso Avançado de Infantaria em Fort Benning (EUA), curso no Estado-Maior e Estado-Maior Conjunto de Portugal, no War College (EUA) e Mestrado em Política e Estratégia, também nos EUA. O último cargo exercido por ele foi de Diretor de Avaliação e Promoção do Exército.
Nesta entrevista, feita por e-mail às vésperas do embarque para o Congo, o general Ricardo Costa Neves fala do seu maior desafio em 40 anos de caserna:
O senhor já esteve no Congo? Sabemos que foi observador militar durante a guerra civil em Angola. Que experiências lhe marcaram?
Nunca estive pessoalmente no Congo, mas, como grande interessado em assuntos de geopolítica, já venho acompanhando e estudando há tempos a história do país, os conflitos e a atuação da ONU ao longo dos 20 anos de atividades lá. Fui observador militar das Nações Unidas em Angola, como capitão, nos anos de 1995 e 1996. Foi uma ótima experiência pessoal e profissional. Serviu para um grande amadurecimento como militar, permitindo-me interagir com militares de muitos países, valorizar e respeitar diferentes perspectivas culturais, fazer parte de um momento especial na história daquela nação, aplicar conhecimentos profissionais em um ambiente multidimensional, trabalhar em prol de um grupo de pessoas interessadas em contribuir para solução de um conflito que já havia causado tanto sofrimento. E, obviamente, aprender a dinâmica e a estrutura da ONU, no que se refere a operações de paz. Fiz questão de me dedicar para exercer meu papel de observador militar da forma mais construtiva possível. Quando cheguei em Angola, a Unavem tinha poucos team sites (grupo de observadores militares destacado em uma determinada região com as missões de acompanhar a implementação dos termos descritos no acordo de paz") desdobrados no país e minha experiência foi vivenciar a expansão dos times de observadores por todos o território de Angola. Pessoalmente, participei da implantação de um team site no norte do país, prestei serviços na região de Uige e tive outra ótima experiência no sul. Em todos esses locais, sempre colhi os ensinamentos que as situações me proporcionaram e me senti muito útil ao desempenhar a função de observador militar.
Teve outras experiências pela ONU?
Além de Angola, como integrante do gabinete do Comandante do Exército acompanhei vários contingentes brasileiros no Haiti. No tocante a dificuldades encontradas, posso dizer que nosso grupo de observadores em Angola por vezes enfrentou situações que exigiram habilidade interpessoal, capacidade de negociação e conhecimento étnico e histórico da região para evitar qualquer tipo de escalada de tensões e hostilidades.
Quando o general Santos Cruz liderou a Monusco, a hostilidade a tropas da ONU era grande. Tanto que morreram, nos últimos anos, 60 capacetes azuis. Já o general Elias Martins Filho acredita que 75% do país está pacificado e que talvez seja possível desativar a missão em dois anos. O senhor está assim otimista? Quais os principais desafios?
De fato, boa parte do país está pacificado. Ainda restam problemas de segurança pública a serem resolvidos, mesmo onde não há presença de grupos armados. Nos locais onde existe a presença de grupos armados, a situação segue instável e ainda carece de forte ação do Estado Congolês e da Monusco para promover a pacificação. Com o prosseguimento das ações hoje empreendidas pela República Democrática do Congo e a colaboração efetiva dos países da região dos Grandes Lagos e de organismos político-econômicos do continente africano, além do apoio das Nações Unidas, julgo que há possibilidade de que a situação naquele país possa ser melhorada no médio prazo. O período inicial de minha permanência na Monusco é de um ano. Após essa fase inicial, pode haver algum tipo de extensão do trabalho desenvolvido. Os países que mais contribuem com pessoal para a Monusco são Paquistão, Índia, Bangladesh, Marrocos, África do Sul, Indonésia, Tanzânia, Uruguai, Nepal e Malaui.
Tem algum contingente brasileiro na Monusco? Observadores militares? Ou apenas o senhor e alguns colaboradores?
Temos 23 militares brasileiros na Monusco. 13 deles integram o Jungle Warfare Mobile Training team (JWMTT), cuja missão é prover instrução especializada em operações na selva para as tropas da Monusco e das Forças Armadas Congolesas (FARDC). Temos ainda sete militares brasileiros (dois coronéis, um capitão, um tenente e três sargentos) que integram o Staff do Force Commander. Temos um tenente-coronel observador militar e um outro tenente-coronel que integra o contingente do Batalhão Uruguaio na Monusco.
É importante para o Brasil ter o comando de uma missão dessas? Por que?
Não há dúvidas que significa muito para o Brasil que a função de Force Commander seja confiada a um oficial-general do nosso país. Essa distinção caracteriza que a ONU tem confiança na liderança militar brasileira para lidar com um problema de grande vulto. Confirma a expertise militar brasileira, já demonstrada em Angola, Moçambique e no Haiti, para conduzir operações de estabilização e manutenção da paz sob a égide das Nações Unidas. Oferece oportunidade para que as experiências colhidas nesse tipo de missão multinacional sejam compartilhadas e estudadas no retorno dos nossos militares para o Brasil. Além disso, ter um brasileiro na liderança do componente militar da Monusco permite ao Brasil contribuir de maneira direta com o esforço de pacificação.
É importante para os congoleses que seja um brasileiro o comandante da Monusco? Por que?
O Brasil tem muito em comum com o Congo. Algumas raízes culturais e históricas similares e, até mesmo em termos de configuração fisiográfica, temos aproximação, uma vez que a porção Este do Congo (região onde alguns grupos armados ainda atuam com mais intensidade) apresenta semelhanças com partes da Amazônia brasileira. Com a presença de um oficial-general oriundo de um país que compreende os desafios e as limitações de conduzir processos sociais e de pacificação, acredito que o povo congolês veja no Force Commander brasileiro alguém próximo e com pleno entendimento da realidade vivida por eles. Embora o Brasil seja um país de economia pujante e que busca estar entre as lideranças mundiais, não é visto como uma nação com características intervencionistas ou que possa ter outros interesses, além daqueles de, genuinamente, colaborar com o processo de pacificação do Congo.
O general brasileiro Santos Cruz ficou famoso por defender que as Nações Unidas devolvessem as agressões recebidas no Congo. Fez aliança com tropas governamentais e conseguiu neutralizar, à bala, assédio da guerrilha à cidade de Goma. O senhor também defende esse tipo de atitude, imposição de paz e devolução de golpes recebidos?
No atual mandato da ONU estão estabelecidas como prioridades estratégicas a proteção de civis e o apoio à estabilização e ao fortalecimento da autoridade governamental do Congo. É com esses princípios em mente que exercerei a função de Force Commander. Tenho que estar ciente da situação exata no terreno no momento, a fim de desempenhar a função dentro das perspectivas estratégicas da ONU. E o mandato atual continua a prever a atuação da Brigada de Intervenção em operações ofensivas. Sempre, é claro, tendo em vista a imperiosa necessidade de proteção de civis.
O senhor dirigiu recentemente a Academia Militar das Agulhas Negras, mas também comandou a 17ª Brigada de Infantaria da Selva e tem formação de paraquedista. Qual o Costa Neves que mais se aproxima dos seus projetos pessoais, o professor acadêmico ou o que está na ação direta, no teatro de operações?
Não há dúvidas que a realização de um profissional das armas melhor se caracteriza quando ele tem a oportunidade de liderar homens e mulheres no desempenho da atividade-fim, na lide diária nos nossos quartéis, no cumprimento das nossas missões constitucionais. O comando de uma Brigada de Infantaria de Selva é o momento para que o oficial coloque toda sua capacidade e experiência à prova para cumprir as missões que lhe são confiadas. Fui muito feliz nos dois anos que comandei a 17ª Brigada de Infantaria de Selva e, julgo, deixei minhas colaborações para a Amazônia brasileira. Assim como foi muito gratificante minha passagem na Brigada de Infantaria paraquedista. Isso não exclui, entretanto, a grande realização que tive ao comandar a Academia Militar das Agulhas Negra (AMAN), escola de líderes do Exército Brasileiro. Tive, inclusive, o privilégio de, no comando da AMAN, receber a primeira turma de cadetes do sexo feminino na Academia Militar. Elas serão as primeiras oficiais combatentes de carreira do nosso Exército.