No último dia 15, o Brasil inaugurou a nova estação científica Comandante Ferraz na Antártica. A um custo de US$ 99,6 milhões, a estrutura ocupa o lugar do antigo complexo que funcionava desde 1984 e que foi destruído em um incêndio em 2012.
A reconstrução marca nova fase da presença brasileira no continente.
O Brasil tem um histórico tardio na Antártica, se comparado a outros países. Há mais de um século, diferentes governantes visualizaram a importância estratégica do continente gelado, dando início a expedições à região. Para países sul-americanos, reivindicações de soberania sobre o território austral estavam ligadas à perspectiva de proximidade geográfica. Argentinos e chilenos em especial invocavam princípios de descoberta, colonização e continuidade geográfica.
Graças a avanços tecnológicos e à percepção de que problemas comuns devem ser tratados de forma transnacional, uma postura científica e internacionalista começou a ganhar força na abordagem da “questão antártica”. Em 1º de dezembro de 1959, o Tratado da Antártica foi assinado por 12 nações reivindicantes de território (Argentina, Austrália, Chile, França, Japão, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Reino Unido, Bélgica, a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e Estados Unidos). O documento surgiu para barrar ambições territorialistas, uma abordagem até então realista das Relações Internacionais.
Ao preconizar o caráter universal da região, através da cooperacão científica internacional, o documento adquiriu conotação idealista. Configurou-se um regime internacional clássico na perspectiva do conceito de Stephen Krasner como “um conjunto de princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões que, de alguma forma, atinge as necessidades de diferentes atores em uma área específica das relações internacionais”.
O Brasil só aderiu ao tratado em 1975, e realizou sua primeira expedição científica em dezembro de 1982. Ainda que diversas pesquisas tenham sido produzidas no continente, o interesse nacional pela Antártica aumentou no início do século 21, coincidindo com o momento em que o país passou a ser reconhecido como potência regional, com interesses de projeção de influência e maior autonomia de ação em seu entorno imediato.
Entorno estratégico
Os objetivos estratégicos brasileiros no campo da defesa são regidos por três documentos do governo federal – a Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco da Defesa (LBD). A primeira vez que a expressão “entorno estratégico” apareceu em documentos oficiais brasileiros foi em 2005. Essas palavras correspondem, no conceito proposto pelo professor José Luiz Fiori, à “região onde o Brasil quer irradiar, preferencialmente, sua influência e sua liderança diplomática, econômica e militar”. Dessa forma, há mudança significativa no entendimento brasileiro sobre a Antártica no momento em que o continente passa a ser incluído como parte do entorno estratégico brasileiro na PND de 2012: “A América do Sul é o ambiente regional no qual o Brasil se insere. Buscando aprofundar seus laços de cooperação, o país visualiza um entorno estratégico que extrapola a região sul-americana e inclui o Atlântico Sul e os países lideiros da África, assim como a Antártica”.
Ao ampliar o entorno estratégico do país para a Antártica, o Brasil passa a valorizar a presença no continente gelado. É possível inferir que também a Antártica está no âmbito dos subitens II da PND, segundo o qual cabe ao Brasil “defender os interesses nacionais e as pessoas, os bens e os recursos brasileiros no exterior”, e VI, que visa “intensificar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção em processos decisórios internacionais”.
Por ser signatário do Tratado Antártico e manter uma estação de pesquisa permanente no continente, pode se deduzir que a participação na defesa da Antártica é de interesse nacional. Também é possível afirmar que as Forças Armadas brasileiras devem estar prontas para atuar no território, a fim de garantir os bens materiais, o pessoal e os interesses brasileiros. Em oposição aos vizinhos, o alargamento do entorno estratégico do Brasil vem ao encontro das novas aspirações enquanto potência econômica no cenário internacional.
O Estado e a ciência
Desde a primeira expedição, em 1982, o Brasil realiza a cada ano uma Operação Antártica (Operantar). A média anual é de 20 projetos de pesquisa em áreas como glaciologia, geologia, meteorologia, biologia, oceanografia e outros. Essas ações configuram-se como instrumento de execução da Política Nacional para Assuntos Antárticos (Polantar).
A ciência sempre foi um poderoso instrumento de intervenção estatal. Com relação à Antártica, a maioria dos pesquisadores brasileiros se vale de parceria com as Forças Armadas para poder acessar o continente. Nenhuma universidade no país dispõe de navios de pesquisa ou em condições de efetuar a travessia entre a América do Sul e o território. Os deslocamentos e os estudos embarcados são feitos em aparelhos da força naval. Ou seja, a comunidade científica depende do Estado para realizar o trabalho de campo na Antártica e, muitas vezes, pode servir aos propósitos de sua política externa.
Embora não tenha feito reivindicação territorial, em caso de revisão do tratado, com eventual partilha do continente, o Brasil se reserva o direito de reclamar parte da região e de seus recursos. O país atribui peso geopolítico à dimensão científica. No documento Ciência Antártica no Brasil – Um Plano de Ação para o Período 2013-2022, está expresso que sua prática “contribuirá de forma expressiva para que o país se torne uma nação reconhecida internacionalmente, pelo seu elevado desempenho científico na região Antártica e Oceano Austral”. No documento de 2007 das Resenhas de Política Externa, primeiro semestre, fica expressa a parceria entre ciência e governo na questão antártica, por ocasião da XIX Reunião de Cúpula do Grupo do Rio, em Georgetown.
A “diplomacia científica” ganha relevância nas ações brasileiras referentes à Antártica. O conceito coloca em foco a cooperação científica internacional e as políticas de pesquisa compartilhada entre países como valor crescente de resolução dos problemas mundiais. A ciência é instrumento de “soft power”, sendo o termo originalmente definido nas relações internacionais como a habilidade dos atores de influenciar os outros através das suas virtudes.
A despeito da importância que exerce no desenvolvimento de uma ação colaboracionista em nível internacional, a ciência é utilizada como ferramenta estatal para justificar a presença brasileira no continente e garantir voz ativa sobre o futuro da Antártica.
Mudança histórica
A partir dos anos 2000, depois de uma série de políticas econômicas que seguiam a cartilha neoliberal e resultaram em crises que abalaram o continente, o país, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, inaugurou uma política externa de inserção estratégia por meio de um processo de integração regional. A nova diplomacia representou a busca pela construção da imagem do Brasil como liderança regional que procurava uma inserção global. Com FHC, no âmbito multilateral, houve o abandono do discurso terceiro-mundista e da compreensão internacional baseada no conflito Norte-Sul.
A ascensão do PT ao poder representou a construção de outras prioridades da política externa, que propiciaram nova matriz de inserção internacional, com aprofundamento da integração regional, retomada da tradição multilateral do Brasil, novo perfil crítico das relações assimétricas entre os Estados e busca de parcerias estratégicas com países similares. As maneiras como esses objetivos foram colocados deram-se não pela imposição da vontade dos atores mais fortes, mas por meio de uma maior cooperação e interdependência entre os Estados.
Esses movimentos são observáveis nas resenhas de Política Exterior do Brasil entre 1995 e 2018. Os termos “Antártica” ou “Antártida” aparecem em 24 documentos, a maioria citando colaboração na pesquisa científica entre Brasil, Chile e Argentina. Observa-se, a partir do governo Lula, que o Brasil buscou aumentar sua influência e projeção internacional, utilizando-se de atuação no entorno estratégico e em fóruns multilaterais.
A cooperação internacional é a ferramenta utilizada pela diplomacia brasileira para projetar influência. Pela análise das Resenhas de Política Externa, observa-se que o Brasil privilegia a cooperação através do multilateralismo e da projeção de ganhos absolutos. Assim, as aspirações brasileiras por uma liderança regional e influência encontram no “smart power” premissa conceitual para explicar a liderança de maneira diferenciada.
Na contramão da cordialidade
A reconstrução de Ferraz, assim sendo, reafirma os interesses brasileiros no continente. O país tem feito uso do regime internacional que rege o sistema antártico, tendo na ciência princípio basilar para demarcar presença no território (uti possidentis) e, ao mesmo tempo, projetar-se como potência regional em relação aos vizinhos Argentina e Chile, cujas ambições territorialistas remontam aos primórdios do Tratado Antártico.
O Brasil imprime suas intenções de liderança ao incluir o continente em seu entorno estratégico, conforme explícito na Política Nacional de Defesa (PND) vigente. Por meio da colaboração em pesquisas e de parcerias com os vizinhos, faz uso da diplomacia científica, exercendo liderança pela influência, princípio do “smart power”. Essas ações, no entanto, contradizem a tradição de cordialidade oficial brasileira, que, historicamente, norteou as relações com o entorno regional. Sucessivos governos brasileiros pós-regime militar vêm utilizando-se da Antártica, nos âmbitos militar, científico e diplomático, como forma de projetar influência.
Mas esse fenômeno acentua-se a partir do governo Lula, quando a política externa dá ênfase à projeção como potência regional, ainda que por meio das instituições e do discurso colaborativo.
A Antártica, como fonte incalculável de recursos minerais, terá seu status rediscutido a partir de 2048. Fazer-se presente por meio da pesquisa é também garantia de legitimidade no debate sobre o status do continente, alvo de cobiça de potências regionais e extrarregionais.