Desestabilizado por uma investigação dos abusos sexuais cometidos por membros do clero contra mil crianças nos Estados Unidos, o papa Francisco reconheceu que a Igreja havia "abandonado os pequenos" em uma carta inédita aos católicos, mas continua sob pressão para mudar radicalmente a situação nas dioceses.
— O relógio anda para todos nós líderes da Igreja, os católicos perderam a paciência conosco e a sociedade civil perdeu a fé em nós — reconheceu em uma declaração o cardeal Sean O'Malley, arcebispo de Boston, que dirige uma comissão de luta contra a pedofilia, aconselhando o Papa sobre a questão mais explosiva da Igreja Católica Romana.
O arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, que vai receber no sábado o Papa na Irlanda, outro país onde o abuso de poder da Igreja deixou feridas profundas, considera esta comissão pequena demais para ser eficaz.
— Não é suficiente pedir desculpas. Estruturas que permitem ou facilitam abusos devem ser desmanteladas para sempre — diz.
Uma investigação do procurador da Pensilvânia revelou na semana passada os crimes de abuso sexual cometidos por mais de 300 "padres predadores" contra pelo menos mil crianças.
"Padres estupraram meninos e meninas e os clérigos que eram seus líderes não fizeram nada por décadas", escreveram os membros de um júri popular em um relatório que detalha o escândalo.
O fenômeno da pedofilia dentro da Igreja segue sendo o calcanhar de Aquiles do pontificado de Francisco, que não consegue punir com a severidade prometida os padres abusadores nem seus encobridores.
— Com vergonha e arrependimento como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde tínhamos que estar, que não agimos a tempo reconhecendo a magnitude e gravidade do dano que se estava causando a tantas vítimas — admitiu o pontífice em uma carta aberta ao "Povo de Deus".
Em 2010, o papa Bento XVI havia reconhecido a responsabilidade da Igreja nos abusos cometidos na Irlanda, por meio de uma carta aos fiéis.
No final de maio, Francisco escreveu aos chilenos, que enfrentam um vasto escândalo de pedofilia. Na segunda-feira (20), ele escolheu falar aos 1,3 bilhão de católicos do planeta das "atrocidades" cometidas pela Igreja, algo sem precedentes.
Pedidos para legislar
Contudo, "Francisco não propôs nenhuma medida específica", aponta o vaticanista americano John Allen, notando que ele não pronunciou uma única vez a palavra "bispo".
— Neste mar de opinião pública, e ideia deve avançar para além da mea culpa; as declarações e encontros com as vítimas já não são suficientes — estima Marco Politi, especialista italiano do Vaticano.
— Chegou o momento de o Papa agir como máximo legislador, tal como indica o código de direito canônico — sugere ele. Neste campo, já há exemplos nos episcopados dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha.
— O Papa poderia abrir as conferências episcopais a enviar às autoridades judiciais as denúncias de abusos recebidas — disse o jornalista italiano Emiliano Fittipaldi, autor de um extenso livro sobre a pedofilia na Igreja.
Para o jornalista, conhecido por suas investigações, "as palavras revolucionárias de Francisco são insuficientes, deve-se passar aos fatos".
— Não queremos processos dentro do Vaticano! — declarou por sua vez Francesco Zanardi, à frente de uma associação italiana de vítimas.
Segundo o blog vaticanista "Il Sismografo", o Papa poderia publicar em breve um documento listando os procedimentos específicos a serem adotados pelos bispos. O Vaticano não confirma esta informação.
O Papa introduziu em 2016 no direito canônico a demissão de bispos em caso de "negligência" nos relatos de atos de pedofilia. Mas a obrigação de denúncia à Justiça civil pela hierarquia não está efetivamente inscrita na lei da Igreja.
Alguns observadores, como a escritora canadense Nancy Huston, pedem também que se aborde um tema por enquanto tabu: o celibato e a sexualidade, para que não seja mais reprimida com consequências desastrosas.
O Vaticano não parece, no entanto, pronto para isso, mesmo que o Papa tenha assegurado em 2014 que o celibato dos padres "não era um dogma".