Nascido em Londres, em 1956, filho de pai escocês e mãe espanhola, o britânico John Carlin é um veterano observador de conflitos. Estreou no jornalismo na redação do The Buenos Aires Herald, na capital argentina, e cobriu extensivamente a política contemporânea em países tão distintos como México, El Salvador, Estados Unidos, Colômbia e África do Sul.
Neste último, onde atuou como chefe da sucursal do diário britânico The Independent, uma longa amizade com o líder Nelson Mandela foi o ponto de partida para seu livro Conquistando o Inimigo, traduzido em 14 idiomas e que inspirou o filme Invictus, estrelado por Morgan Freeman.
Com essa bagagem, Carlin tornou-se um analista sofisticado do separatismo catalão depois de se fixar em Barcelona, em 1998. Com a “crise territorial” aberta em setembro, passou a defender o diálogo e criticar a intransigência do governo espanhol.
No dia 11 de outubro, foi afastado do jornal El País, de Madri, do qual era colaborador desde 2000, por diferenças com a linha editorial do periódico, alinhado à posição do governo espanhol em relação à Catalunha.
Questionado por Zero Hora sobre o episódio, por telefone, responde com bom humor:
– Meu guia moral nesse caso é Cristiano Ronaldo. Quando José Mourinho (técnico de futebol) deixou o Real Madrid e fez críticas ao clube, Ronaldo disse algo como: “Não se cospe no prato em que se comeu”.
Ao ouvir que se trata de um antigo provérbio português, Carlin brinca: “Ou da Madeira”. A seguir, uma síntese da entrevista do jornalista sobre a crise espanhola.
O senhor tem uma trajetória profissional que vai da América do Sul à Europa, passando pela África. Como explicaria a crise na Espanha ao leitor brasileiro?
O desafio aqui é não ficar falando por toda a noite. (risos.) Em resumo, a Catalunha é uma região autônoma dentro do Estado espanhol, que tem uma significativa margem de autogoverno. É uma região de 7,5 milhões de habitantes, uma das mais prósperas da Espanha, com capital em Barcelona. A pessoa mais conhecida da Catalunha é um argentino chamado Lionel Messi. Existe o fenômeno do nacionalismo, não como uma espécie de ultrapatriotismo, vai além de amar tua pátria, tua música ou outro aspecto. É um nacionalismo de sentido competitivo, de se sentir litigante em relação ao vizinho. Neste caso, o vizinho é o resto da Espanha. A história da Catalunha, nos últimos 300 anos, tem vários episódios de opressão por parte do governo central de Madri, especialmente em relação à língua local, o catalão. Isso gerou um sentimento de nacionalismo e de querer se tornar independente.
Esse sentimento independentista teve um crescimento notável nos últimos anos.
Quando cheguei a Barcelona, em 1998, o movimento independentista era muito limitado. Incluía 5% a 10% da população, era politicamente irrelevante. Nos últimos cinco a sete anos, houve uma espécie de explosão. Hoje, diria que está ao redor de 50% da população. Em um período de sete anos, subir de 10% a 50% é algo extraordinário. Criou-se uma pressão por um plebiscito para se resolver de uma vez a questão. O problema é que o governo central, em Madri, se opôs de maneira férrea à realização do plebiscito, que teria exigido uma mudança na Constituição. Nos últimos cinco anos, houve uma crescente hostilidade retórica entre Barcelona e Madri. Em 2012, 1 milhão de pessoas foram à rua em Barcelona pela independência. O governo de Madri sempre disse não, não e não ao plebiscito. Recusou-se ao diálogo, e isso ajudou a que partidos independentistas mais radicais ganhassem votos com uma percepção de hostilidade e falta de respeito em relação aos catalães. Chegamos a esta situação em que o governo regional está dominado por independentistas por uma pequena margem. Celebraram um plebiscito, não um de fato porque o resto da Espanha não o respeitou, mas as pessoas foram votar nesse simulacro de plebiscito. O governo da Espanha respondeu com a força, enviou a polícia, em imagens que deram a volta ao mundo. Isso obviamente agudizou a hostilidade entre a Catalunha e o resto da Espanha. É uma situação de muita tensão ante a possibilidade de declaração unilateral de independência, que levaria o governo a mandar a polícia e o aparato de segurança tomar o poder na Catalunha e derrubar a autoridade regional. Estamos aqui em uma espécie de incerteza, com muito medo. Não sabemos o que vai ocorrer.
O senhor é um crítico acerbo do independentismo catalão, mas faz a defesa do direito dos catalães a decidir. Qual seria a solução política mais correta para essa crise?
É preciso distinguir entre o que é possível e o que é correto no mundo ideal. Para mim, a solução ideal, mas muito pouco possível neste momento, é que se faça o que deveria ter sido feito há cinco anos: uma emenda à Constituição que permita um plebiscito com o qual todos estivessem de acordo e que o resultado fosse respeitado. Se isso tivesse ocorrido há cinco anos, estou absolutamente convencido de que o “não” à independência teria vencido por ampla margem, não teríamos esta crise perigosa e o tema da independência seria deixado de lado por uma geração. Agora, é mais complicado. Sem o plebiscito, os sentimentos estão todos muito exaltados, e não estou muito seguro sobre qual seria o resultado. Mas, de qualquer maneira, a solução na Catalunha tem de ser, para começar, diálogo. E diálogo, nesta hora, é algo que os governos de Madri e de Barcelona estão cogitando. Com base nesse diálogo, o ideal seria um plebiscito para que se decidisse o que fazer para limpar isso e que o governo espanhol se comprometesse a respeitá-lo.
Como avalia a posição europeia diante do impasse?
Eles dizem que apoiam o Estado soberano espanhol, representado pelo governo de Mariano Rajoy em Madri. Creio que é o que lhes cabe fazer. Não podem aliar-se aos secessionistas, porque isso seria um precedente perigoso para o resto da Europa. De qualquer jeito, creio que a atitude dos governos europeus deveria ser, caso as duas partes pedissem, de mediar um diálogo e tentar buscar uma solução inteligente e pragmática. Neste momento, somente o governo da Catalunha pede mediação, enquanto Madri a rechaça. Assim, a posição da União Europeia é de ficar fora até que as duas partes peçam sua participação.
O que a experiência sul-africana e o exemplo de Nelson Mandela poderia ensinar no caso espanhol?
Para começar, um respeito ao inimigo, ao rival. Entender que o inimigo tem outra posição, mas chegou até aqui por circunstâncias da vida. É preciso respeitá-lo porque é assim. Por outro lado, ter a inteligência política de conhecer seu inimigo, de entender por que busca o que busca, por que tem seus receios, seus medos. Depois, poder sentar-se, poder meter-se na pele, nos sapatos do inimigo, para poder melhor entendê-lo e depois poder ganhá-lo na negociação porque se entende melhor seus processos mentais do que ele entende os seus. Com base nisso, se começa um diálogo e se busca uma solução na qual se aceita um princípio no qual um precisa ceder na sua posição ideal e o outro igualmente. Se os dois cedem, no final, os dois saem ganhando porque se chega a um resultado. Mandela era um homem que buscava resultados concretos. Esses são os três elementos chave de seu êxito como político. Não vejo nenhum desses três elementos – nem respeito, nem capacidade de se colocar na pele do outro, nem pragmatismo – na posição do governo espanhol atual.