Reputada por suas margens de águas cristalinas apreciadas por turistas do mundo inteiro, a ensolarada cidade de Nice, no sul da França, desperta neste fim de semana assombrada pelo mar de sangue provocado pelo ataque terrorista da noite de 14 de julho, simbólica data nacional da queda da Bastilha. Até o final da sexta-feira, o saldo do massacre perpetrado por Mohamed Lahouaiej Bouhlel, condutor do caminhão assassino de 19 toneladas, era de 84 mortes – 10 crianças – e 202 feridos, dos quais 54 em estado de extrema gravidade.
Pelo lado das autoridades, as investigações avançam para descobrir a origem do ataque realizado pelo tunisiano de 31 anos radicado na França, que trabalhava como motorista há um ano e era completamente desconhecido dos serviços de inteligência franceses.
– É um combate que será longo – assumiu o presidente François Hollande, que prorrogou o estado de emergência antiterrorista no país por ao menos mais três meses.
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Os habitantes de Nice mesclavam o luto marcado por olhos marejados ou lágrimas abundantes com sentimentos de indignação e de impotência. A alegre cidade estival mergulhou no pesadelo terrorista. Grande parte do comércio permaneceu fechado, e espetáculos como o show da cantora Rihanna, agendado para sexta-feira, foram obviamente cancelados. Vanessa Brakha, 38 anos, decidiu abrir sua butique de roupas. Não para vender, mas para "partilhar e conversar com as pessoas":
– Os clientes entram e me abraçam, desabafam, choram, o que evidentemente nunca ocorre aqui.
Vanessa não foi à Avenida Promenade des Anglais, que deveria reabrir ao público neste sábado, para ver os tradicionais fogos de artifício na noite de quinta-feira por receio da onipresente ameaça terrorista. Mesmo motivo pelo qual desistiu de assistir ao show do grupo Coldplay há cerca de um mês.
– Estamos todos ainda meio grogues com tudo o que aconteceu. As pessoas já tinham certo medo, e agora vão ficar ainda mais desconfiadas. Sofremos com os atentados de Paris, mas aqui é como se tivessem atacado no jardim da minha casa. O efeito é outro – confessa.
Já a brasileira Denise Barros, 37 anos, 10 deles vivendo na França, que estava passando o feriado nacional em Nice junto com o namorado francês, não quis perder a magia dos fogos e acabou testemunhando a chacina à beira-mar.
– Foi horrível, horrível, horrível – era só o que a maranhense, que mora perto de La Rochelle, conseguia repetir após ver o choque.
– Estava caminhando de volta para casa quando veio uma maré humana, as pessoas correndo como se fosse uma espécie de arrastão, todo mundo gritando, pânico total. E de repente, vi aquele caminhão branco avançando sobre a multidão e passando por cima dos pedestres. Vi os corpos embaixo das rodas, o motorista manobrava perseguindo as pessoas, foi horrível, horrível – diz, ainda assustada.
Críticas à atuação do governo na prevenção
Denise correu com o namorado para se abrigar numa rua lateral, de onde diz ter escutado disparos. E logo se apressou em retornar ao local onde estava hospedada, no final da Promenade des Anglais.
– Tinha muita criança, era o 14 de Julho, uma festa de família, estava lotado. Vi pessoas gritando, crianças chorando. Perdi completamente a noção do tempo. A gente fica chocado e se sente impotente com essa violência, esses ataques. Muito horrível – insiste.
Uma célula de crise com atendimento de psicólogos para testemunhas com sintomas de choque pós-traumático foi montada em Nice. Uma missa foi celebrada na Catedral Sainte-Réparate, com as presenças do ex-presidente Nicolas Sarkozy e da líder da extrema-direita Marion Maréchal-Le Pen. Na Promenade des Anglais, homenagens às vítimas por meio de buquês de flores e velas acesas se sucederam ao longo de todo o dia. Além da emoção, também emergiram palavras de ira contra a incapacidade das autoridades de evitar os repetidos atentados.
– Os políticos são hipócritas. Não se obtém a paz pela guerra, só mais guerra. E isso só gera mais ódio aos muçulmanos. Agora mesmo ouvi aqui alguém dizendo na calçada: "Tem de acabar com todos eles (muçulmanos)". Mas estes terroristas que matam em nome do islã não são verdadeiros muçulmanos – desabafa Fatima, 55 anos, francesa de origem marroquina.
Ao seu lado, Amira, 29 anos, demonstra ânimo ainda mais exaltado. Grávida de oito meses de seu segundo filho, ela estava entre a multidão perseguida pelo caminhão terrorista e, inclusive, feriu-se na perna em meio a correria.
– Estamos fartos, há um mal-estar geral. Existem discriminações aqui contra as minorias. E se tivessem colocado barreiras e mais policiais no 14 de Julho, essa tragédia não teria ocorrido – acusa.
No campo político, diferentemente da "união nacional" pregada no rastro dos atentados do ano passado, a oposição, de olho nas eleições presidenciais de 2017, disparou contra o governo Hollande em pleno período de luto nacional. Nos próximos dias, quando a Assembleia Nacional votar a extensão do estado de emergência por mais três meses, a previsão é de que os discursos sejam ainda mais acalorados.