A Europa e o mundo vivem a iminência de uma virada de página na História, em um episódio que pode ser resumido no aforismo "Ser ou não ser, eis a questão", do bardo William Shakespeare. O sinal mais eloquente da importância que tem a possibilidade de a Grã-Bretanha deixar a União Europeia (UE) vem do presidente do Conselho Europeu, o polonês Donald Tusk, que faz uma avaliação drástica: caso o referendo do próximo dia 23 conclua pela saída britânica, poderá ser "não apenas o início da destruição da UE, mas também da civilização ocidental".
Os eleitores devem responder à seguinte pergunta: "Deve a Grã-Bretanha permanecer como membro da UE ou sair da UE?". As duas respostas possíveis são "permanecer" e "sair". Tusk, que é historiador e enfatiza essa formação, tem insistido que o eventual afastamento britânico será "um revés econômico para a Grã-Bretanha e, também, do ponto de vista geopolítico".
– Perder um sócio global seria péssimo para o projeto europeu, ainda que o custo comercial não fosse tão elevado, porque a Grã-Bretanha seguiria sendo parte do mercado internamente. Mas os custos político e moral seriam brutais. A principal consequência seria a debilidade do projeto comum – diz o cientista político espanhol José Ignacio Torreblanca, especialista em Europa.
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Torreblanca também entende que o sistema financeiro se fragmentaria e "haveria incertezas muito grandes sobre o que ocorreria com Londres como centro financeiro, sem funcionar dentro das normas europeias":
– A respeito da política exterior e de segurança, haveria consequências nas negociações de tratados políticos e comerciais, porque a Grã-Bretanha poderia voltar a assinar seus próprios acordos com outros países.
As pesquisas têm mostrado um eleitorado britânico dividido e indeciso, o que aumenta o impasse. Em um primeiro momento, o favoritismo era da tese de que a Grã-Bretanha devesse continuar na UE. Os levantamentos mais recentes, porém, dão leve vantagem para a saída, o que fez o governo do premier conservador David Cameron se utilizar da ameaça de um aperto fiscal, com corte de gastos e aumento de impostos no que estima como "década perdida". Seus adversários, os nacionalistas incrustados no mesmo Partido Conservador e chamados de "eurocéticos", veem nesses avisos feitos pelo ministro da Economia, George Osborne, umrecurso desesperado contra o Brexit.
De um lado, sob o argumento de que a aliança com os vizinhos prejudica a Grã-Bretanha e que é necessário recuperar a soberania perdida e frear a imigração da Europa (em especial dos refugiados que chegam do Oriente Médio), os defensores do Brexit veem o vínculo à UE como um peso. Oito economistas favoráveis ao Brexit assinaram documento sustentando essa tese e acusando o governo britânico de disseminar o pânico ao pressionar pela permanência no bloco.
Suas premissas são contestadas por Cameron, pelos aliados internos e por organismos como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). No jornal Financial Times, o analista econômico Martin Wolf relata salvaguardas e regimes de exceção já existentes para os britânicos e diz que a adesão da Grã-Bretanha à UE aumentou o comércio com os parceiros europeus em 55% e também a produção. Os anti-Brexit citam riscos. Em visita a Londres, o presidente Barack Obama, preocupado com a economia e com a aliança geopolítica, alertou para um possível retrocesso.
O FMI projetou, em um informe, "graves danos regionais e globais".
Morte de deputada pode interferir no resultado
A agência de classificação de risco Standard & Poor’s avalia que o Brexit enfraqueceria a libra em relação ao dólar e ao euro, pois "derreteria" o investimento externo direto. O rating AAA do país correria riscos. Além disso, pesquisa do apartidário Instituto para Estudos Fiscais (IFS, na sigla em inglês) mostra que o endividamento britânico cresceria e que o déficit fiscal chegaria a US$ 44 bilhões, obrigando o governo a rever a projeção de superávit no ano fiscal 2019–2020 e a manter o programa de austeridade até os anos 2020.
Um trágico fato novo ocorreu na quarta-feira, com potencial para diminuir a popularidade do Brexit. A deputada Jo Cox, 41 anos, partidária da permanência na UE, foi morta por um suposto neonazista favorável à saída britânica chamado Thomas Mair. Conforme o Southern Poverty Law Centre, Mair tem "longa história com o nacionalismo branco". Teria gasto US$ 620 em material de leitura sobre a Aliança Nacional, que defende uma nação branca e sem judeus. Jo foi atacada a tiros em Birstall, norte da Inglaterra. Seu assassino teria gritado "Grã-Bretanha primeiro!", lema da extrema direita.
Condomínio continental
O Brexit põe em risco a União Europeia, condomínio erguido depois da II Guerra Mundial (1945), que promoveu convergência econômica e estabilidade em contraste com o passado de conflitos e fragmentação em séculos de história. Mesmo com todo esse benefício, sempre foi fustigado pela contestação de muitos dos seus membros, que contrapõem ideias nacionalistas ao ideal de uma identidade europeia comum. Aqui, 10 curiosidades sobre o bloco e o referendo deste dia 23.
1 – O bloco é formado por 28 países. Dos integrantes da UE, 19 adotaram a moeda comum, o euro, desde 2002.
2 – A Grã-Bretanha faz parte da comunidade europeia desde 1973.
3 – Os britânicos nunca adotaram o Euro como moeda.
4 – Em 1975, houve referendo semelhante, e os britânicos optaram por ficar.
5 – Os oponentes à UE costumam ser partidos nacionalistas e de ultra-direita, além de setores da esquerda e de centro.
6 – O perfil dos pró-Brexit costuma ser definido por analistas como "nacionalista" e "populista".
7 – Batalha interna entre conservadores: premier David Cameron (anti-Brexit) X ex-prefeito de Londres Boris Johnson (pró).
8 – Enquanto o Partido Conservador está em "guerra civil", o trabalhista é pró-UE.
9 – O tabloide The Sun apoia a saída da UE.
10 – O Financial Times está do outro lado.