Ele já havia suportado uma perigosa viagem pela Baía de Bengala, espremido num barco de pesca, e depois esmagado numa picape enquanto descia pela costa sul da Tailândia. A Malásia, seu destino final, estava ilusoriamente perto.
Mas sob as altas árvores de uma plantação de borracha, o contrabandista que havia trazido Abdul Musid, um muçulmano de 30 anos da minoria Rohingya, de Mianmar, surgiu com uma nova exigência: pague mais ou seja deixado para trás. Quando Musid suplicou explicando não ter mais dinheiro, o contrabandista lhe deu um chute e o deixou para morrer.
Um aldeão encontrou Musid e o levou ao hospital de Hat Yai para tratamento, depois que outros prisioneiros de um acampamento de contrabandistas, também Rohingyas de Mianmar, foram levados por seus algozes antes de uma invasão das autoridades tailandesas.
A violência contra a minoria muçulmana Rohingya pelo grupo étnico Rakhine, impulsionada por uma ideologia budista extrema, levou dezenas de milhares de Rohingya a fugir, nos últimos 18 meses, utilizando-se de organizações de contrabandistas que prometem levá-los à Malásia - país muçulmano que silenciosamente aceita estrangeiros em desespero.
A Tailândia é o porto onde os Rohingya - que têm sua cidadania legalmente negada pelo governo de Mianmar - chegam em barcos de pesca convertidos em navios de carga humana. Quando têm dinheiro para pagar negociadores inescrupulosos, eles partem rapidamente para a vizinha Malásia.
Mas aqueles que não conseguem pagar definham em campos de contrabandistas escondidos pela selva no sul da Tailândia, ou nas terríveis prisões das autoridades de imigração do país.
Apesar do longo histórico tailandês de absorver refugiados de conflitos em país vizinhos, como Vietnã e Camboja, além de membros de outros grupos étnicos de Mianmar, o país se negou a conceder abrigo temporário ou serviços básicos aos Rohingya. O governo se recusa a avaliar seus pedidos de asilo, segundo grupos de direitos humanos, e os submetem a condições tão duras de detenção que alguns morrem sob custódia. Declarações do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, de que a Tailândia deveria tratar os Rohingya como outros refugiados, não conseguiram convencer o governo tailandês, afirmou a agência.
Em vez disso, o governo autorizou o que chamou de deportação "suave" dos Rohingya: eles são retirados das prisões, colocados em barcos de madeira no porto de Ranong, no sul, e largados no Mar de Andaman. Lá, são novamente coletados por contrabandistas que, segundo grupos de direitos humanos, estão muitas vezes em conluio com as autoridades tailandesas. Os que não podem pagar pela passagem até a Malásia são forçados a trabalho escravo em plantações tailandesas e barcos de pesca, dizem os ativistas.
O governo tailandês quer que Mianmar aceite os Rohingya como cidadãos, declarou o Major General Thatchai Pitaneelaboot, comandante de imigração em Songkhla, no sul da Tailândia, cujas celas de detenção estão repletas de refugiados. Mesmo assim, explicou ele, "eles vêm para cá ilegalmente, sem permissão, e temos que deportá-los".
Muitos Rohingya, tendo perdido seus meios de subsistência nos violentos ataques a suas comunidades, não veem outra escolha além de fugir de Mianmar, antiga Birmânia. Eles são presas fáceis para as eficientes redes de contrabando comandadas por tailandeses, malaios e os próprios Rohingya - alguns dos quais iniciam o processo de contrabando nas aldeias e campos de desalojados de Rakhine, estado do norte de Mianmar onde vive a maior parte desse grupo, cerca de 1,3 milhão.
Desde junho de 2012, quando a violência contra eles começou, estima-se que mais de 2 mil Rohingya estejam perdidos no mar, possivelmente afogados, afirmou Chris Lewa, coordenador do Projeto Arakan, um grupo de direitos humanos especializado nos Rohingya. No total, cerca de 80 mil Rohingya deixaram Mianmar por via marítima desde então, segundo Lewa.
As pessoas que perecem nos campos são geralmente aqueles incapazes de pagar os contrabandistas, que exigem US$2.000 para a viagem até a Malásia, de acordo com funcionários tailandeses de imigração.
O desespero leva os Rohingya a fugir de Mianmar, mas a perigosa jornada deixa muitos em condições igualmente difíceis. Um número cada vez maior vem chegando à Malásia com paralisia causada por desnutrição crônica e abusos físicos durante longos confinamentos nos campos de contrabandistas da Tailândia, de acordo com a agência de refugiados da ONU em Kuala Lumpur, a capital malaia.
Numa entrevista no hospital onde se recuperava de seus ferimentos, Musid declarou ter deixado Mianmar depois que budistas Rakhine tomaram suas terras e ele teve dificuldades para sobreviver como pescador. Dois intermediários Rohingya o convenceram de que a vida era melhor na Malásia, e que por US$600 poderiam levá-lo até lá.
Ele não tinha esperança de conseguir uma quantia como essa, mas com uma entrada de US$35, ele chegou a um acordo que lhe permitiria pagar o restante quando encontrasse trabalho na Malásia.
Pouco tempo depois, uma pequena embarcação de madeira o levou a uma traineira que aguardava em águas internacionais, perto da costa de Bangladesh.
Após cinco dias no mar com pouca água e comida, o barco parou em algum ponto na costa sul da Tailândia. O grupo passou cerca de dois dias num acampamento improvisado na selva, e então Musid foi espremido com outros 20 homens na caçamba de uma picape.
Dez horas depois, quando a viagem pela estrada terminou perto da fronteira malaia, cinco dos homens, enfraquecidos pelas privações das semanas anteriores estavam mortos.
Musid então ficou detido num armazém com outros Rohingya enquanto intermediários exigiam dinheiro pela parte final da viagem à Malásia, apesar do acordo de pagamento no final. Ele disse que não tinha dinheiro e nenhum parente que pudesse ajudar.
Enquanto o campo era apressadamente desmontado, contou, um dos homens voltou a exigir dinheiro e lhe entregou um celular para que ele ligasse para alguém na Malásia.
Quando Musid disse não ter ninguém para ligar, o contrabandista o atacou. O ferimento em sua virilha foi tão profundo que ficou gravemente infectado quando ele foi deixado na selva, explicou o Dr. Bancha Thiptirapong, que cuidou dele no hospital.
Outros simplesmente não sobrevivem. Na aldeia de Chalung, perto dali, cinco homens foram enterrados em covas sem identificação. Suas mortes foram causadas por septicemia, segundo certificados hospitalares, condição diagnosticada depois que eles foram encontrados abandonados. Os Rohingya mais saudáveis haviam deixado o campo dos contrabandistas.
O futuro de Musid parecia sombrio.
Após nove dias no hospital, funcionários da imigração vieram e levaram-no ao lotado centro de detenção de Songkhla, sob jurisdição de Thatchai.
Havia poucas dúvidas, afirmou Matthew Smith, diretor executivo da Fortify Rights, de que Musid seria encaminhado para a deportação "suave".
Dali ele seria mais uma vez capturado por contrabandistas que, ao descobrir que Musid não teria como pagar por sua liberdade, acabariam recorrendo a sua tática final de eliminação.
Aqueles sem dinheiro são vendidos como mão de obra barata para barcos de pesca do Golfo da Tailândia, disse Smith - uma escravidão longa e dura, que deixa ainda mais distante o sonho da Malásia.
Conflito
Minoria muçulmana tem cidadania negada por governo de Mianmar
Vítimas de violência, Rohingya são brutalizados ao tentarem fugir da região
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