Os manifestantes se reuniram na frente da delegacia de polícia aos gritos de "não à escravidão" e "liberdade". Eles vieram de todo o país para exigir a prisão de uma família acusada de manter uma escrava desde a infância, mas só conseguiram alguns olhares tímidos dos policiais parados em silêncio diante deles. O subprefeito do distrito foi fazer a sesta em meio ao calor da tarde.
Neste ano, o governo admitiu cautelosamente que um flagelo milenar ainda assombrava a nação, criando uma nova agência para exterminar os "vestígios da escravidão" na Mauritânia. Em um país cujas autoridades sempre negaram a persistência do problema, a disposição de decorar uma agência governamental com a palavra "escravidão" - nada mais nada menos do que anunciando o feito com um letreiro reluzente em uma das principais ruas da capital - foi uma virada e tanto na direção certa, afirmam especialistas.
Contudo, para os ativistas mauritanos que pressionam por uma atitude há anos, muitas vezes arriscando a própria pele, a mudança é ambígua. Será que o governo está mesmo comprometido em terminar essa prática secular? Ou está tentando apenas passar a impressão de que tem essa intenção?
- Vestígios, eles falam em 'vestígios', quando ainda existem pessoas acorrentadas - , afirmou Balla Touré, integrante da Iniciativa pelo Ressurgimento do Abolicionismo, grupo que atua contra a escravidão, classificando a nova agência como - só para inglês ver - .
A escravidão foi abolida há décadas na Mauritânia, e o diretor do novo órgão governamental - chamado - Agência de Solidariedade Nacional pela Luta Contra os Vestígios da Escravidão, pela Integração e pela Luta Contra a Pobreza - - afirma que nenhum caso dessa prática veio à tona desde que ele começou a trabalhar em abril.
- O governo não se envolve plenamente com essa questão desde a independência - , disse Hamdi Ould Mahjoub, o diretor, prometendo maior empenho de agora em diante. Mesmo assim, nos meses em que tem administrado o órgão, ele insiste que - não encontramos nenhum caso de coação -
Segundo dados, a nação da África Ocidental tem a prevalência mais elevada de escravidão no mundo, estimando que pelo menos 140 mil pessoas, entre os 3,8 milhões de habitantes do país, são escravos de "patrões que exercem propriedade total sobre eles e seus descendentes", segundo o Índice Global de Escravidão de 2013, de autoria da Fundação Walk Free, ONG australiana cuja missão é denunciar países e empresas responsáveis pela escravidão moderna ao redor do mundo.
- Em termos objetivos, eles são escravos - , afirmou Zekeria Denn, especialista da Universidade de Nouakchott, capital do país, a respeito da intrincada teia de relações servis. De acordo com ele, a dinâmica entre patrão e escravo varia amplamente na Mauritânia, mas os principais elementos de coerção são a pobreza extrema ou a crença de que o islã impede o rompimento da servidão.
No quintal de areia da casa de um ativista de Nouakchott, jovens contam terem apanhado e sido forçados a executar serviços humildes desde a infância nas residências de elites de pele mais clara - geralmente uma mistura de povos berberes e árabes que os locais chamam de mouros - sem qualquer pagamento.
- Eu nasci na escravidão - , disse Said Ould Ali, adolescente magro feito um palito de 15 anos. - Eu cresci na família moura na qual nasceram minha mãe e minha avó. -
M'Barka Mint Essetim disse ter sido tirada da mãe por uma moura quando tinha cinco anos, no começo apenas para buscar coisas na loja. Enquanto crescia na residência de uma "família com ótimas conexões", na capital, as tarefas foram crescendo: levar as cabras para pastar, procurar lenha, varrer, cozinhar.
- Era uma vida miserável - , disse M'Barka, agora com 25 anos.
O ativista que a abriga, Biram Dah Abeid, também filho de um escravo, contou que M'Barka foi estuprada pela primeira vez aos nove anos e teve o primeiro filho do dono mouro aos 14. O filho do patrão também a estuprava. M'Barka disse que a filha de 11 anos, não reconhecida pelo dono, ficava sentada ao lado dela na barraca.
Durante anos, o governo dominado pelos árabes, mouros brancos como são conhecidos aqui, se recusou a admitir que a escravidão persistisse na Mauritânia, que milhares de seus cidadãos negros, geralmente mulheres, ainda eram forçados a trabalhar como empregados domésticos, pastoreando camelos e cabras, desde muito pequenos, nas mesmas famílias em que as mães e as avós trabalharam. Em 2007, uma lei criminalizando a escravidão foi aprovada. Porém, três anos depois, ninguém havia sido processado nos termos da lei, segundo um investigador das Nações Unidas.
Então, o movimento antiescravagista mauritano radicalizou, forçando a questão a ser tratada às claras. No ano passado, Dah Abeid queimou publicamente venerados textos jurídicos islâmicos que justificavam a servidão. As ações geraram multidões furiosas que exigiam vinganças, fatwas contra ele e um castigo rápido - prisão e ataque à sua casa - por parte das autoridades de um país muçulmano onde reina a lei da charia (ou sharia).
Entretanto, no entender de ativistas e observadores, as atitudes de Dah Abeid aumentaram a pressão sobre o governo.
- Nós estamos fazendo bastante barulho - , disse Touré. - Estamos mobilizando os haratins - , ele disse, usando o termo empregado para os escravos libertos.
No entanto, apontam os ativistas antiescravagistas, mesmo com a nova agência a punição tem sido mínima ou não existente em muitos dos casos denunciados. Geralmente, os familiares acusados de manter escravos são rapidamente liberados ou não são incomodados pelas autoridades mauritanas.
Os manifestantes na delegacia de Boutilimit, a aproximadamente 200 quilômetros a sudeste de Nouakchott, disseram que uma família local detinha e às vezes batia em uma garota de 18 anos, Noura Mint Mourada, desde que esta tinha quatro anos. Segundo relataram, a mãe também trabalhara na mesma família.
Em entrevista, Noura disse que - a patroa falava: 'uma escrava não responde, só obedece' - .
Durante breve período, as autoridades prenderam vários membros da família acusada de escravizar Noura, mas o promotor os libertou afirmando não haver prova de crime, segundo os ativistas. Como os protestos continuaram durante semanas, os manifestantes foram presos e espancados.
O homem acusado de ser o antigo dono e agressor de M'Barka, conhecido entre os moradores locais como Brahim, ainda não foi incomodado pelas autoridades. Comerciante próspero em Nouakchott, onde a loja ocupa uma quadra inteira, sua família reagiu constrangida quando questionada sobre o relacionamento da moça com ele.
- Ele não tem escravos - , afirmou uma adolescente que saiu à porta da residência espaçosa e caiada de branco em uma rua totalmente arborizada no bairro mais chique da capital. Segundo ela, o pai viajara para seus campos. - Ela não era escrava do Sr. Brahim. M'Barka não é escrava. -
Ela deu uma risadinha: - A escravidão é coisa do passado. -
M'Barka e os ativistas contra a escravidão que a ajudaram contaram que ela fugiu da casa quando recebeu permissão para visitar a mãe doente um dia e simplesmente não voltou mais. Mais tarde, ela se casou com o motorista da família e agora mora com ele em um barraco na periferia desolada da capital. De acordo com o motorista, as autoridades deixaram de lado as acusações de sua esposa por causa das boas conexões do antigo patrão.
- Agora eu vivo em paz - , afirmou M'Barka. - Ninguém mais bate em mim -
Escravatura
Mesmo duas décadas depois da abolição da escravidão, Mauritânia ainda encontra vestígios do passado
Ativistas questionam se as medidas do governo realmente estão auxiliando para erradicar a escravatura
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