Essa deve ser a novela mexicana mais "limpa" do momento.
Cedendo às sensibilidades mais conservadoras, as cenas quentes de amor, típicas do gênero, se resumem a alguns beijos no rosto e mãos dadas, demonstrações de afeto tão inocentes quanto as de pré-adolescentes no primeiro encontro.
E essa não foi a única mudança feita pelos produtores daquela que é considerada a primeira "telenovela" falada toda na língua indígena local, o maia, e com uma história voltada para essa comunidade.
Para começar, María, a mocinha, não pode falar nada do tipo: "Estou me apaixonando por você" quando seu amor, Jacinto, finalmente se declara; isso porque embora frases como "Eu te amo" sejam relativamente "traduzíveis", as expressões relacionadas/derivadas da palavra "paixão" podem passar todo o tipo de mensagem dúbia.
- O certo seria dizer algo equivalente a 'O coração do meu coração está feliz' - explica Hilario Chi Canul, professor de Língua e Cultura Maias. Foi ele também que ajudou a escrever o roteiro e interpreta o protagonista de "Baktun", que estreia este mês no canal estatal Quintana Roo.
Como sempre, a atração tem os elementos padrões do formato: ganância, traição, brigas de família, amores não correspondidos e atuações que com certeza não renderiam nenhum prêmio internacional.
Porém, mais que um dramalhão, "Baktun" é uma jornada cultural que usa circunstâncias contemporâneas, mescladas com cerimônias e crenças maias na história de um jovem que vai para Nova York para trabalhar e acaba se distanciando da família e da comunidade - chegando até a "enferrujar" a língua mãe - e que acaba voltando e aprendendo o valor de preservação das tradições e redescobrindo o amor de infância que, de quebra, se interessou por seu irmão.
Baktun refere-se a um megaciclo do Calendário Maia e foi escolhido de propósito para ser o título por causa de toda a atenção que o tema recebeu em dezembro passado, quando interpretações errôneas e comentários levianos na internet levaram muita gente a acreditar que o fim do mundo estava próximo. Na verdade, trata-se apenas do fim de um ciclo e início de outro.
No caso da novela, é uma metáfora para as etapas da vida, em constante mudança.
- Queríamos mostrar que é perfeitamente possível ter orgulho de ser um maia mesmo nesse mundo moderno com mídia de massas e comunicação digital. A telenovela é bem popular nas comunidades maias também, embora não seja apresentada em sua linguagem nem reflita sua realidade - explica Bruno Cárcamo, produtor veterano de cinema e TV que fez a novela e já supervisionou um documentário sobre os idiomas que estão desaparecendo no México.
Em formato de seriado, em 21 episódios e também embalada como longa-metragem para ser exibida nos festivais de cinema, a obra foi filmada em um vilarejo isolado e histórico do estado de Quintana Roo, famoso pelo levante maia que causou estrago à igreja local, no século XIX que fica a 225 quilômetros ao sudoeste de Cancún.
A maior parte do elenco é de moradores da cidadezinha com pouquíssima ou nenhuma experiência de atuação, atraído em parte pela fama. Recentemente Cárcamo me mostrou alguns episódios do drama e o filme, exibido em um salão ao ar livre a um público que permaneceu grudado às cadeiras, hipnotizado, mesmo quando alguns problemas técnicos interromperam momentaneamente a transmissão.
- Não devemos jamais esquecer nossas origens. Nem acreditei que fosse a nossa língua. Vejo muita telenovela, mas nada parecido com essa - disse María Elena Tuz Kuvil, que ficou sentada com o corpo para frente durante quase toda a exibição.
Muita gente disse ter se identificado com o ciclo de ganhos e perdas, como dezenas de jovens que saíram da cidade para trabalhar nos hotéis dos resorts próximos ou nos EUA. É cada vez menor o número de pais que ensinam o dialeto maia aos filhos, embora Cárcamo calcule que o idioma seja falado como língua mãe por 80 por cento da vila. De fato, durante as filmagens, geralmente ele precisava de um intérprete para se fazer entender.
- Os pais não veem utilidade em ensinar a língua maia; prefere que os filhos aprendam inglês, mas muitos amigos meus lamentam não terem aprendido a falar o dialeto quando eram crianças - conta José Manuel Poot Cahun, de 26 anos, que interpreta o irmão vilão e foi criado falando tanto o maia como o espanhol.
Opções de entretenimento em maia são raríssimas. Há documentários ocasionais e filmes de Hollywood dublados e só. O filme de 2006 de Mel Gibson, "Apocalypto", que se passa durante o declínio do império maia, foi praticamente todo falado no idioma, com Chi Canul fazendo as vezes de linguista para a produção. Porém, foi muito criticado por destacar apenas as práticas violentas da civilização - tanto que hoje Chi Canul se refere a ele como "um exagero de Hollywood que não tem nada de histórico".
Segundo os especialistas na cultura maia, uma telenovela inteira - assim como qualquer drama para a TV - que se passe no mundo maia e seja falada em seu idioma é fato inédito.
- É muito importante que o povo indígena possa contar histórias de sua realidade, não só em documentários, mas também em formatos ficcionais. Isso permite que ele se veja como parte do panorama da mídia, ao mesmo tempo em que abre espaços para outras formas de autodefinição - afirma Adrien J. Charlois, professor de Comunicações da Universidade de Guadalajara, que estuda a história da telenovela.
Apesar disso, Cárcamo e Chi Canul tiveram que conquistar o apoio dos anciãos da comunidade, céticos em relação a "gente de fora", mas que acabaram convencidos pelo fato de ser uma história maia contada por maias.
Com a TV estatal de Quintana Roo financiando 60 por cento do orçamento de US$250 mil (Cárcamo entrou com o resto), os roteiristas escolheram o vilão principal com cuidado, evitando qualquer tipo de ligação com o crescimento do turismo que vem incomodando certas comunidades e preferindo marcá-lo como um industrial de nacionalidade vaga que quer explorar as terras indígenas.
Só que trabalhar em maia em uma cultura que evita demonstrações públicas de carinho não é fácil - e muitas cenas consideradas tão normais nas telenovelas, como a troca de beijos apaixonados, podem ofender a comunidade.
- Cortamos todas as cenas de beijos - revela Cárcamo, que escreveu o roteiro com um colega em espanhol e depois o adaptou para o maia com Chi Canul.
A tradução de um nome, porém, os atrapalhou demais e, por isso, simplesmente a evitaram. "Nova York" virou apenas uma "cidade muito, muito distante".
Para explicar a dificuldade, Dhi Canul questiona:
- O que é 'York?'